Onde a terra acaba (2002)

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*Por Murilo Costa

Como parte da programação do Festival É Tudo Verdade, o Itaú Cultural terá cinco documentários disponíveis gratuitamente por streaming em seu site. Os filmes tratam de artistas brasileiros de diversas áreas, e ficarão em cartaz no site até o final do Festival, no dia 30 de abril. Hoje, 17, a partir das 21h, será a vez de “Onde a terra acaba”, do diretor Sérgio Machado, que aborda a trajetória de Mario Peixoto. O cineasta, responsável pelo clássico “Limite” – presença garantida em praticamente qualquer lista de melhores filmes realizados no Brasil – conheceu a glória já em seu primeiro trabalho, mas nunca mais conseguiu terminar um projeto.

O cinema nacional praticamente inexistia quando Mario Peixoto é enviado para uma temporada de estudos na Europa, em 1928. Isolado em um país distante e castigado pelo frio e chuva incessantes, o jovem se apega à sétima arte como uma forma de fuga. E é em solo inglês que ele assiste pela primeira vez “Metrópolis”, de Fritz Lang. A experiência, em uma sessão lotada o marca da mesma forma que o filme, como registra em seu diário.

Quando retorna ao Brasil e aos amigos, eles se apressam em mostrar a última novidade do país: Humberto Mauro, o maior e mais ambicioso cineasta brasileiro do período, acabara de lançar “Brasa Dormida”. O longa é a mais bem feita tentativa até o momento de se aproximar do domínio técnico e narrativo do cinema europeu.

O rigor excessivo da linguagem e dos enquadramentos estava distante da euforia e criatividade de Fritz Lang. Entretanto, apontava que era possível fazer cinema no Brasil. Com a centelha na cabeça, numa conversa informal com os amigos, sem reais pretensões, Mario Peixoto comenta que gostaria de fazer um filme – e até tem um roteiro rascunhado em seus dias depressivos na Inglaterra. É o que basta para que logo estejam todos empolgados e unidos em torno da ideia.

Os amigos logo se escalam como atores, buscam locações e apontam um possível diretor que, após ler o argumento, diz o óbvio: o próprio Mario Peixoto seria a pessoa mais indicada para conduzir a filmagem de um roteiro tão peculiar.

Empenhado, o grupo consegue até mesmo um encontro com Humberto Mauro, que os encoraja e indica seu parceiro Edgar Brazil para o projeto. O fotógrafo é um dos principais responsáveis pelo sucesso do filme, fazendo todos esforços possíveis pra criar os planos pedidos pelo diretor. Com equipamento profissional escasso no país na época, ele apela para a criatividade e inventa aparatos para substituir os travellings, a grua e até para imitar uma steadycam – que só iria surgir para o mundo muito tempo depois. As imagens de making of, uma raridade resgatada pelo documentário, mostram o seu trabalho incansável em estruturas improvisadas.

A estética de Limite é tão única e adiantada para a época quanto a sua linguagem e tema. Embora muito do crédito certamente seja de Edgar Brazil como operador, é possível supor que quase tudo realmente saiu da mente de Mario Peixoto. Nos filmes seguintes do fotógrafo não há nada tão ousado ou impactante. Sem encontrar compreensão em seu meio, o filme acabou não sendo exibido comercialmente.

Embora toda a historia por trás da execução de Limite seja ótima, o grande trunfo do documentário vem a seguir, quando aborda o filme que lhe empresta o nome: Onde a Terra Acaba.

O longa seria uma nova colaboração de Mario Peixoto e Edgar Brazil, agora com mais recursos. Por trás da empreitada estava Carmen Santos, uma das primeiras e provavelmente a maior estrela do cinema brasileiro da época. Encantada com o que vira em Limite, ela encomendara para o jovem cineasta um filme em que pudesse ter uma personagem forte e interessante. Toda a imprensa da época se interessa no projeto, que já é amplamente divulgado antes mesmo das filmagens começarem.

Do primeiro filme, uma empreitada pessoal e feita a seu jeito, com total liberdade, Mario logo passou a um projeto gigante, precisando lidar com assédio, pressão e o ego de uma grande estrela. Mesmo tendo sido a principal incentivadora do projeto desde o início, Carmen Santos também foi a maior inimiga durante sua realização. Seus problemas pessoais faziam com que precisasse frequentemente abandonar as gravações para viajar ao Rio de Janeiro. E, mesmo quando estava no set, acabava se envolvendo em discussões com Mario – que também chegou a largar tudo por duas vezes, para depois retornar, engolindo o orgulho. Mas a continuidade das brigas tornou a situação insustentável, resultando no abandono do filme.

Com seus vinte e poucos anos, Mario Peixoto tivera seu grande feito ignorado pelo grande público, enquanto seu fracasso fora amplamente noticiado desde o início até o melancólico final. Desenganado com o cinema, exilou-se em uma casa na Ilha do Morcego e lá permaneceu por muito tempo, rodeado apenas por suas plantas e caseiros.

Nos anos seguintes apareceu muito pouco, fugindo da imprensa quando procurado. Mas, já mais próximo do final da vida, percebe-se uma urgência, uma necessidade de se expressar, de tentar de novo. Um amigo tenta emplacar um filme seu pela Embrafilme – mas diz que o próprio Mario acabava sabotando o projeto. Medo do fracasso? É fascinante pensar no que se passava em sua cabeça. Tudo que podia ter sido e não foi. Todas as ideias guardadas, o sentimento de rejeição, a ideia de fracasso.

Em um rápido e incrível trecho, vemos Mario na tela. Ele cede, revela seus pensamentos: descreve uma delirante cena cheia de detalhes, complexa. Sua realização exigiria ousadias técnicas inimagináveis para o cinema brasileiro da época. Será que ele inventaria formas de tornar isso filmável? Ele novamente desafiaria as definições de possível, venceria as limitações e faria uma nova obra-prima? Nunca tivemos a chance de saber.

Se Mario Peixotou não nos deixou em vida mais uma obra-prima, seu material bruto rendeu uma pequena pérola. “Onde a Terra Acaba” é fotografado e montado com uma sensibilidade rara. Não fugindo ao estilo de “Limite”, pega emprestado o lirismo e dramaticidade de suas trilhas e paisagens, e toma a liberdade de adicionar som. Trechos dos diários de Mario Peixoto e observações gerais permeiam o filme, numa ótima narração em off gravada por Matheus Nachtergaele. O material de arquivo é riquíssimo, e os pouco mais de 70 minutos passam rapidamente, mesmo trazendo tantas historias, emoções, aflições e questionamentos.

A CRIATURA QUE SE VOLTA CONTRA SEU CRIADOR

O tema do cineasta engolido por seu próprio filme já rendeu alguns grandes documentários e ficções. É um drama que habita o imaginário de todos profissionais da classe; talvez porque quase todos eles já estiveram bem próximos de situações-limite como essa. Um set de filmagem pode parecer um mundo de magia e fantasia para quem assiste aos making-ofs de divulgação, mas na vida real é mais próximo da definição criada por Samuel Fuller: um campo de batalha.

Há muitos perigos e bombas escondidas nesse campo minado. A batalha pode ser contra egos gigantes – desde o elenco a membros da equipe, ou até do próprio diretor – como vemos em filmes como “A Noite Americana”, de François Truffaut. Em “Oito e meio”, a pressão vem por conta da própria reputação do diretor, que o precede e gera altas expectativas. O bloqueio criativo é outro velho vilão – esse também conhecido pelos escritores – como mostrado em “Adaptação”. A figura mais impessoal e antagônica do Produtor também é um clássico, como em “Assim estava escrito”, de Vincent Minelli.

Se a ficção oferece tantos bons exemplos e grandes filmes sobre o assunto, é o documentário quem nos traz as historias reais – e, por isso mesmo – incrivelmente superiores, ricas e complexas.

Em “O apocalipse de um cineasta” vemos Francis Ford Coppola desafiar a natureza ao tentar recriar o Vietnã nas Filipinas. A luta que se segue é épica, quase levando-o a insanidade. Quando as forças invisíveis dão uma trégua, é Coppola quem se torna o maior inimigo de seu próprio filme, perdendo-se em exageros, invenções, improvisos e horas, horas e mais horas de material gravado. Entretanto, ao final, o diretor vence, mesmo que com baixas: embora picotado pelos produtores, Apocalypse Now é um sucesso.

Já no angustiante “O inferno de Henri-Georges Clouzot”, o título do filme que o cineasta rodava não poderia ser mais condizente com as gravações. Obsessivo e metódico, o francês roda infinitos testes e possibilidades para cada cena. “O inferno é a repetição”, dizem. E Clouzot se enfia em seu próprio inferno pessoal, repetindo cenas e takes sem sair do lugar, gastando todos os recursos a sua disposição, parecendo enlouquecer tanto quanto o seu protagonista. Acossado pelo fracasso iminente e sem saída diante de sua ambiciosidade sem limites, Clozout teve consequências sérias: o desgaste físico e mental o levou a ter um ataque cardíaco. O filme foi cancelado.

*Murilo Costa é cinéfilo, cineasta e integrante da bancada do Central Cine Brasil.

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