ESPECIAL: 100 histórias escondidas da Copa do Mundo – Parte 4

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Se em algum momento da sua vida você já cogitou assistir pessoalmente uma final de Copa do Mundo, provavelmente você ao menos tem alguma noção do quão emocionante isso deve ser. Isso é paixão pelo futebol – e pelo futebol de verdade, não aquele que a mídia tradicional tenta nos empurrar, com arenas supermodernas e arquibancadas divididas. E se você pensa assim, o nosso ESPECIAL COPA DO MUNDO é pra você.

Com a assinatura de Leandro Iamin, a Central3 preparou parte quatro desse especial, com mais cinco histórias, curiosas e memoráveis. Confere aí:

 

85 – A COPA E O CANTO DA ÁFRICA

A Fifa socorreu o Comitê Organizador da Copa do Mundo de 2010, colocando um dinheiro extra às contas já estouradas para a construção de cinco estádios e a reforma de outros cinco. Vinte mil pessoas, em nome de uma destas obras, foram “deslocadas” de suas favelas, pois estavam, vejam vocês, no “perímetro Fifa”, novo delimitador social de um país tão traumatizado com separações, apartheid – 80% da população é negra, e sua renda é menos da metade da média do país, o que dá uma dimensão do quanto de dinheiro está nas mãos dos 20% de brancos daquele país.

Desde 1994 o regime que naturalizava a segregação racial no território sul-africano estava extinto, graças ao político negro e socialista Nelson Mandela. Tal recuperação (no mínimo) moral do país não se transformou em igualdade econômica, tampouco quebrou de verdade as cercas invisíveis do racismo do país, que teve, com a Copa do Mundo de rugby de 96, um marco bem conhecido e descrito até em filme. Um dos países mais indefiníveis e complexos do mundo sentia ainda o perfume da união entre os ambientes social, político e esportivo.

A pena é que a seleção da África do Sul apostou em Joel Santana, e depois, quando não deu certo, trouxe para o lugar alguém ainda pior: o inacreditável Carlos Alberto Parreira. A seleção nem passou de fase no mundial vencido pela Espanha, depois de, na final, o holandês Robben – ironicamente o mesmo nome da icônica ilha do país onde Mandela passou 27 anos preso, e ironicamente loiro – jogou fora um gol feito. Nada indicava que fazia sentido uma Copa do Mundo tão cara ser disputada no inverno de um país com tantas outras necessidades. Os ingressos, aliás, foram pouco procurados, e o número de visitantes ao país decepcionou.

Fica a lembrança das vuvuzelas, barulheeeeentas, e a entrada em campo para o aquecimento dos anfitriões no jogo de abertura. Um canto melodioso que vem da alma, com orgulho, em um idioma que ninguém soube traduzir, sobre uma história que ninguém sabe mesmo contar. Por poucos instantes, até pareceu que fazia sentido a Copa do Mundo estar ali. As imagens são da Sportv.

84 – LOCO HOUSEMAN, O DESAJUSTADO FUNDAMENTAL E A IMPORT NCIA DOS ÍDOLOS VELHOS

O futebol argentino, na verdade o povo argentino, é bom nesse negócio de idolatrar alguém. Tanto, mas tanto, que às vezes a gente cede à narrativa do culto à personalidade a ponto de, voltando ao futebol, só enxergar uma pessoa entre 11. “Maradona ganhou a Copa sozinho”. “A Argentina de 78 era só o Kempes”. Quem olha a idolatria de longe costuma reduzir seus significantes ao redor e tropeçar no exagero. No mundo da bola, reduzimos atletas fundamentais, como Valdano em 86 ou Ardiles em 78, a postos de coadjuvantes que não lhes cabem.

Mas René Houseman abraçou este papel, se não no campo, fora dele. Viveu à margem da sanidade e dos costumes. Seu apelido, “Louco”, era mais rótulo do que carinho. Sua história não foi contada com a camisa de Boca ou de River, mas com uma tão menos badalada, a do Huracán. Sua Copa foi efetivamente a de 1974, aquela que não deu em nada, mas Loco Houseman, saindo e entrando do time, estava na campanha, em casa, que deu aos argentinos a taça de 1978 – fez 6 jogos, marcou 1 gol – mas não deu a ele a moral que merecia.

Houseman veio à Copa de 2014, no Brasil, como colunista de uma revista chamada Garganta Poderosa, projeto argentino voltado à voz das favelas que tinha a cara dele: não estava no radar da cobertura oficial e festejada do Mundial. Se hospedou na favela de Santa Marta, ficou entre ela e a Cidade de Deus, e de lá fez a cobertura da Copa do jeito que mais lhe conectou com seu passado e sua história. No domingo da final da Copa, naquele Maracanã lindo e luxuoso, Houseman estava longe, acomodado – e feliz por isso – no Rio de Janeiro sem perfume, de verdade.

Ninguém veio de fora e viveu a Copa de forma mais sincera que ele.

A última aparição de Houseman, debilitado, aconteceu recentemente, sentado na calçada do estádio do clube no qual foi ídolo, esperando a peleja começar. É Passarella quem ergue a taça em 78, Maradona faz o mesmo em 86, e não faltam craques nesta história em que só 43 podem se dizer campeões do mundo. Poucos, muito menos de 43, foram como Houseman. Quase nunca um profissional exemplar, por vezes vítima dos vícios mundanos, certamente um vivente demasiado intenso para este jogo que mexe tanto com a gente. Houseman morreu hoje, e merece a devida lembrança.

Os desajustados das arquibancadas te agradecem por tudo. O padrão Fifa não te pegou, Loco.

83 – SCOLARI, A BATALHA DE NUREMBERG E O QUE FICA DOS JOGOS BRUTOS

Luiz Felipe Scolari deixa sequelas. Gremistas e palmeirenses nunca mais foram os mesmos, e a seleção, campeã do mundo em 2002, era o resultado dos remendos de sua teimosia com seu senso estranho de lealdade e gratidão, além de sua simpatia por tipos incapazes de lhe dar um dia de tédio. Cordeiros nunca foram sua preferência, e isso não é exatamente uma crítica. A proposta de jogo nunca prometeu arte, e não é um problema, desde que uma carreira vitoriosa seja construída através dela – no Scolarismo, legado nenhum fica se não resultar em título. O Brasil ganhou a pior Copa do Mundo da história com alguma tranquilidade.

Aí ele pirou Portugal. Com uma Euro em casa para jogar, conseguiu um vice à sua maneira: épicos e vitórias contra times de mais tradição, vacilos nos jogos nos quais é preciso apenas um pouco de bola. Chegou a Copa na Alemanha em 2006, e Portugal foi parar em Nuremberg para as oitavas-de-final contra uma Holanda forte, bem forte. E aquilo foi Felipão em estado puro. Aquilo foi feio de dar dó. 16 cartões amarelos, quatro expulsões, provocações de todo tipo, lances grotescos como a recusa (e a consequente bordoada) de Deco em devolver uma bola por “fair play”…

Foi 1×0. Felipão não perde jogos neste nível de animosidade. Há quem ache que Cristiano Ronaldo virou adulto neste jogo, graças às travas da chuteira de Bouhlarouz. Cronômetros pós-jogo mostravam o quanto Ricardo, goleiro português, retardou reposições. Os homens nos bancos de reservas, mais de uma vez, quase trocaram sopapos. Insuportável. Ficou para a história como jogo em que o novo futebol proposto pela Fifa , regido pelo tal “fair play”, foi engolido por um filho da Libertadores acolhido por um povo de sangue quente. Portugal chegaria à semifinal, após tirar, com emoção e pênaltis, a Inglaterra. A Batalha de Nuremberg (cidade na qual o tribunal militar internacional julgou os figurões do nazismo alemão) foi a obra-prima daquele pintor de garranchos.

Alguma coisa aconteceu para que o arquiteto das maiores batalhas dos anos 90, que colheu os frutos das vitórias e da paixão pelo jogo sem perder a essência nos anos 00, escalasse Oscar, Bernard e Hulk no 7×1, que na verdade é 10×1, considerando o 3×0 que a Holanda enfiou no Brasil valendo o terceiro lugar. Aquela Holanda que apanhou de Felipão em Nuremberg não podia reconhecer o mesmo comandante em Brasília, só oito anos depois. Mas a Dona Lúcia reconhecia.

82 – O VOO DA MUAMBA, A NIKE E O PASSAPORTE APOSENTADO

Tem uma piada entre os lá de fora que só entende quem transita pelos aeroportos: se o sujeito carrega muito mais malas do que consegue, pode crer que é brasileiro. É impressionante como carregamos tralhas para onde vamos, e não são apenas os potes de feijão. Considerando que a taça da Copa do Mundo pesa entre quatro e cinco quilos, o que será que poderia fazer o voo de volta dos tetracampeões de 1994, dos Estados Unidos direto para os braços do povo no Brasil, ter 14 toneladas de bagagem, sendo que na ida eram apenas três?

O brasileiríssimo “Voo da Muamba” chegou de Varig (saudosa! Saudosa?) primeiro em Recife, por gratidão à cidade que abraçou a seleção quando tudo era crise em 1993 e o resto do país queria Romário dentro e Parreira fora – estava certo, o povo! Depois, um gesto político em Brasília, coisa rápida. Alfândega, mesmo, a delegação brasileira encontraria no Galeão, no Rio. Coisa simples, só prestar contas à Receita Federal, dez toneladas de mercadoria, tranquilo, numa boa – claro, esta prestação de contas nunca aconteceu. Ricardo Teixeira e sua protetora à época, a Traffic (do hoje preso J. Hawilla), deram a carteirada. Passaram batido.

Na lei dos que não foram tetra, quinhentos dólares em produtos era o limite sem taxa neste tipo de viagem. Branco, por exemplo, gastou 18 mil, portanto 36 vezes o limite, com uma cozinha completa trazida dos States. Fazendo as contas dos quilos, dá mesmo para colocar muamba na mala de todo mundo, mas não trabalho na alfândega: o Rio estava na rua esperando o desfile dos jogadores, os paulistas estavam na fila para o mesmo ato, vamos festejar, e a receita que processe a CBF depois. Na verdade, teve CPI.

Isso porque a Copa dos Estados Unidos foi um marco não só pra gente. A Nike gostou do que viu, entrou no futebol a partir dali, e se tornou mais um dos tentáculos deste polvo maligno chamado Ricardo Teixeira, forte demais em todas as frentes, mas atento: para a Copa de 1998, chamou Antonio Carlos Amorim, presidente do Tribunal de Justiça do Rio, para ser convidado VIP da seleção. Paris não é New York, mas o voo da volta estava protegido pelos tapas nas costas.

Nike, Traffic, CBF, voos, muitos voos, e que ironia foram os fins dos tempos de Ricardo Teixeira, denunciado pela polícia dos Estados Unidos, sem poder retornar à sua casa em Boca Ratón, na bela Miami, e, desde 2015, não por falta de vontade, com pés fincados no Brasil e sem mais carimbos da embaixada americana no passaporte. Jura que é inimigo do antigo anjo da guarda J. Hawilla, este preso nos Estados Unidos. E jura que pagou ICMS em 1994. Sei. Voo da muamba, nunca mais. Nunca mais?

NA FOTO: PARREIRA, SEMPRE PRECAVIDO, ESCREVE SEU NOME EM UMA IMPRESSORA (FOLHA)

81 – DOIS DÓLARES E VINTE CENTAVOS

Final da Copa do Mundo de 1962. Dois dólares e vinte centavos para ver Garrincha em uma Final de Copa. Que não era para ter Garrincha, que devia estar suspenso, na verdade até estava, mas jogou, puta história estranha. Com 33 Reais de 2014 dava para assistir a Final da Copa de 1950, no mesmo Maracanã que recebeu os dois jogos. Que não é o mesmo Maracanã e de certa forma nem o mesmo jogo. Mas era. Enfim. Final da Copa do Mundo de 1962. Dois dólares e vinte centavos.
80 – MATERAZZI, O VILÃO QUE NÃO É VILÃO, O MOCINHO QUE NÃO É MOCINHO

Marco Materazzi pode não ser o mais leal dos homens. Mas também não era o que de mais grosseiro havia no mundo. Numa outra encarnação em tempos medievais, seria aquele que mata, sem dó, mas com alguma liturgia. Que cumpre ordens, mas tenta emplacar uma filosofia. Nunca um Baresi, mas também não um Gattuso. Materazzi se tornou o zagueiro titular da seleção italiana em 2006, após a lesão do excelente Nesta, exemplo de zagueiro correto, técnico, limpo.

Materazzi, canhoto, também sabia jogar como lateral. Zagueiros completamente grossos, como alguns o classificam, não conseguiriam atuar por ali. Com 1,93m, era um dos mais dominantes defensores pelo alto em sua geração. E sua participação no mundial da Alemanha foi muito boa. Seu parceiro de zaga, Cannavaro, foi eleito naquele ano o melhor jogador do mundo, e não teria conseguido isso ao lado de um zagueiro vacilante.

Sua participação na final da Copa foi notável. Cometeu o pênalti para a França. Depois, marcou o gol de empate, de cabeça. Voltaria a marcar na disputa em pênaltis e seria o homem capaz de tirar do sério e de campo Zidane, na mais esquisita cena daquela Copa e talvez de uma final mundialista. Ele já era estereotipado. Virou o vilão dos vilões – um vilão que ganhou a Copa como destaque da decisão, um vilão que foi agredido de uma forma que, se fosse ao contrário, não teria atenuantes, um vilão porque sim.

Antes da final, havia feito um outro gol, e recebido um cartão vermelho. Depois da Copa, fez a imprensa mundial de gato e sapato jogando migalhas de pistas sobre o que afinal ele disse para causar tanta ira em Zidane. Prazer mórbido, orgulho do que fez. É o botinudo litúrgico. Técnico mas violento, que uma coisa não anula a outra. Difícil de enquadrar na narrativa fácil de mocinhos e vilões. Duas Copas antes, Gamarra fez zero faltas e, por isso, virou um discutível exemplo de zagueiro – sempre foi bom jogador, mas não por este motivo. Materazzi não ofereceu contraste fácil.

Zidane bateu o pênalti de cavadinha, o que, considerando a ocasião, mostrava mesmo que o craque francês estava em um dia meio maluco. Materazzi não era o único ali com um parafuso a menos, mas talvez tenha sido, dos 22 daquela decisão, aquele que melhor explorou o que tinha para explorar como jogador.

79 – BAIXINHO PRA MAMÃE NÃO OUVIR

O editor desta série, Leandro Iamin, escreveu, dois dias após o 7×1, o texto abaixo, originalmente publicado no saudoso site Impedimento. Tá aqui a releitura, que reler é bom também. Muita coisa mudou em como ele pensa. E muita coisa não mudou.

Dona Lúcia é minha mãe. Por uma coincidência, ela se parece muito com a Rita Lee e ao mesmo tempo é fã incondicional da dita cuja. Eu pareço com o Lobão e a última coisa que sou no mundo é fã do cidadão. Levei Dona Lúcia domingo ao musical da Rita Lee, um baita espetáculo teatral, e, se não aconteceu o encontro das duas tal qual torcia, aconteceu da noite ser quente, bonita, emocionante. Minha linda disse, olhando o pequeno cartaz que emulava um dos discos da homenageada: “quando eu vivi isso, eu não sabia que estava vivendo a história”. E é verdade, não é comum a gente imaginar o que a geração futura vai pensar quando encontrar numa exposição este notebook que eu acho espetacular mas que não continuará sendo por muito tempo, e é mais ou menos a mesma coisa com as pessoas, os prefeitos, os craques.

Mandei uma mensagem para Dona Lúcia após os hinos nacionais de Brasil e Alemanha. “Vamo”, escrevi enquanto mentalizava o pão de queijo que ela fazia na Copa de 2002, o pão de queijo que era o quarto homem daquele ataque pentacampeão, que aquecia as madrugadas de meus 17 anos, que em 94 eram 9 e no banco tinha o Ronaldo, então com 17, e eu podia estar, pensava numa aritmética simples, entre os reservas do time de 2002, eu queria jogar naquele time e teria idade, mas a vida sorriu pra mim e eu comia pão de queijo com Dona Lúcia, e, puxa vida, aquilo era bom. Eu adorava aquela seleção e aquele treinador que me fez virar português no ano seguinte e jogar, mais tarde, numa espécie de ponto máximo de idolatria, o Uzbequistão na Wikipedia.

Sou o cara que criou, certa vez, a Canários do Reino, uma torcida organizada para a seleção. Ela durou um só jogo. Eu não tinha dinheiro sequer para comprar um pedaço de pano. Eu não tinha ideia de como fazer aquilo ter alguma vida própria, eu tinha, sei lá, uns 20 anos, e a torcida morreu sobretudo de solidão, eu com a carteira 1, um amigo com a carteira 2, mas morremos com nobreza: ninguém da Rede Globo ou da CBF ficou sabendo e veio conferir o sonho louco de um jovem apaixonado, uma pauta e tanto para o Jornal Hoje, repórteres sorridentes, urgh. Sou também o cara que viajou pelo interior da Argentina em 2011 para acompanhar o time do Mano, o time dos quatro pênaltis perdidos, o time que já cheirava o fracasso mas que eu não me importei pois estava ao lado de meus tios, meus heróis que seguiram o time nas Copas de 90 e 94 e me deixaram desde sempre o recado: deixe que falem merdas, ignore, a verdade é que a seleção é importante pra cacete.

Brasil x Paraguai, Córdoba, segunda rodada da referida Copa América 2011. Dani Alves é massacrado por Estigarribia, toma 3 canetas em 30 minutos, Ramires joga bem e socorre o pobre e limitado lateralzinho, e no ataque temos Jádson, Ganso, Pato e Neymar. Que coisa. Na arquibancada, um exército paraguaio engole os amarelos, come com farinha. Por vezes creio ser o único brasileiro ali que não foi ao jogo por um acaso, por já estar na cidade de toda forma. Só o brasileiro não curtiu a Copa América. Até os mexicanos ricocheteavam em massa pelas ruas. Brasileiro, não, nada, quase zero. Todo mundo se guardando pra quando o Mundial chegar. Enfim, Fred fez 2×2, empatou no crepúsculo, salvou nossa pele, e a gente até acreditou que na fase final, em La Plata, quando estaria valendo mesmo, o Paraguai de Tata Martino não seria páreo. Mas foi. Nos tirou da bagaça do mesmo jeito que o Chile deveria ter nos tirado no Mineirão. Neymar foi substituído por Fred naquele jogo, olhem só como isso soa estranho hoje. Vejo só como agora tudo isso faz um sentido que não fazia antes, da torcida ao Martino, do Ganso ao Fred, do Dani ao Neymar.

Eu não comemorei nada. Contra o Chile, exausto após saborear o inferno, não deu. Contra a Colômbia, sem capitão e esperando o diagnóstico do moleque, não deu. Desliguei a TV pelo domingo todo e parte da segunda. Fui ao cinema, joguei vídeo-game, fiz estas coisas que não se faz durante a Copa. Cheguei ao dia do jogo numa moderada e necessária alienação. Apito inicial, eu de pé, mensagem pra Dona Lúcia, o coração em descompasso, e foram cinco pedradas, um macarrão sem molho e a moça do cassino puxando todas as minhas fichas para longe de minha base.

Eu apostei demais. Levei para o pessoal. Eu não aceitava perder antes, perder pro Chile, e não se pode levar o futebol nessa medida. Não aceitava pois alimentei a ideia de que esta Copa era a maior, a única que veria em casa, na tal da idade ideal, era a Copa definitiva e insubstituível, a minha Copa, e onde diabos estava o filósofo de minha mente para desconstruir essa baboseira óbvia?

Pois a filosofia me diria que se essa Copa era tão única assim, por que eu me enfiei, perplexo, no quarto ao invés de curtir a invasão argentina e holandesa na minha cidade? E que papo é esse de momento único, se nenhum dia é igual ao outro de qualquer maneira? Não desconstruí, acreditei num tudo ou nada dentro de mim que só poderia me levar de encontro ao muro. Hoje olho os 300 reais que separei pra viajar ao Rio de Janeiro e viver 48 horas na rua chapado e feliz, sentindo a final. Lembro de quantos amigos debocharam de tudo, minimizaram o afeto dos outros, torceram contra mas não fizeram nada a favor de si mesmos. Me vem à tona tudo que defendi, discuti, desejei, tudo que adiei pensar e tudo que não quis considerar, e me sinto, um dia após o 7×1, um completo imbecil enquanto Felipão e Parreira, duas das figuras mais cínicas da República Federativa, resumem a façanha de superar o Maracanazo a meros seis minutos de pane.

Parreira encerra a inacreditável entrevista coletiva com a consagrada e eterna carta da Dona Lúcia, a esposa do Pacheco, a farmacêutica do Fernando Vanucci, a identidade alternativa de Rodrigo Paiva. Por um momento lembro que Parreira plagiou partes de um livro de sua suposta autoria, e desconfio que a carta era para o Klinsmann e ele só adequou sutilmente. Logo em seguida, porém, admito que eles são mesmo capazes de todo o ridículo surreal que estou vendo. Lembro da minha linda e amada Lúcia, a mãe que eu motivei, acelerei, envolvi, fiz querer demais a vitória e que ali, naquela hora, parecia que eu tinha envenenado, feito um mal. Dona Lúcia, Donas Lúcias, vão aos teatros ver as Ritas Lees de suas vidas. Os ídolos de minha vida jogam um jogo que envolve auge e decadência, vitórias e derrotas, não é como cantar músicas para quem quer ouvi-las. Seja como for, eu vivi a história, e isso deve ser mais legal que fingir descaso ou sinceramente não sentir nada. Dor e delícia de quem ganha e perde. Eu sinto muito, e torço muito, pela camisa amarela, pelo time que é paixão de haitianos e malaios, africanos e caribenhos, pelo time que era pra ser tão mais legal do que é. O 7×1 não muda meu afeto (embora tire meu açúcar). Mas me fará pensar duas vezes na próxima vez que for enviar uma mensagem para Dona Lúcia.

78 – VIDA E MORTE DE SINDELAR, E A FIFA QUE NEGOU A GUERRA

Você está na cadeira de presidente da FIFA, e recebe uma carta do governo da Alemanha nazista comunicando que a Áustria está agora anexada ao seu país, e, por isso, não jogará a Copa, que começa em três meses. O que você faz? Pois a FIFA não fez nada. Preocupada com criar a melhor das três edições do Mundial, já que seria no país do criador Jules Rimet, havia um plano a ser seguido: finjam que o mundo não está entrando em uma Guerra Mundial.

Desta forma, a FIFA, em 5 de abril, quase um mês depois de receber o comunicado, fez o sorteio das chaves da Copa do Mundo, e incluiu a Áustria no dito cujo. Dezesseis equipes se alinhariam em um mata-mata desde o começo, e os austríacos caíram em um equilibrado confronto com os suecos. Seriam os favoritos, se ainda contassem com o “Wunderteam”, ou “time incrível” numa porca tradução, que, na Copa anterior, chegou à semifinal.

Os cobras deste time de 34 estavam agora vestindo a camisa da Alemanha, certamente a contragosto. A FIFA precisou sair de seu mundo de fantasia, e assumir que não havia, tecnicamente, uma Áustria para jogar. Convidou a Inglaterra, e tomou um “não”. A Letônia, que ficou logo atrás da Áustria nas eliminatórias, pediu, com toda justiça, a vaga, e recebeu um “não”. Era complicada, a FIFA. Preferiu dar à Suécia o W.O. e a vaga direta à segunda fase. E os alemães chegavam reforçados e enfrentariam a Suiça.

E deu Suiça, no jogo-desempate (havia jogo-desempate, não disputa em pênaltis, e a final, vejam só, previa divisão da taça em caso de dois empates seguidos). A Alemanha voltou cedo para casa, com seus austríacos a tiracolo, e particular ressentimento por um atleta: Sindelar, o “Homem de Papel”, atacante leve que foi um dos craques do Mundial de 34, se recusou a jogar pela seleção alemã em 1938. Judeu, foi o único a levantar a voz e negar a mudança de camiseta. Em 1939, sua esposa morreu, e ele morreu pouco depois.

Deixo para vocês concluírem se foi ou não suicídio.

77 – O 3-5-2, UM DIA EXCOMUNGADO, QUE SE TORNOU PENTACAMPEÃO

Os pontas se tornavam cada vez mais raros. Alguns técnicos deviam achar a posição pouco participativa, muito específica, ou não acreditavam muito no poder do drible e da velocidade rumo a linha de fundo. A figura do segundo atacante de área ganhava força, eram tempos de 4-4-2 e suas variáveis, um homem mais centralizado para defender, um outro atacante para fazer sombra. O jogo fica mais apertado, o lateral enxerga mais espaço para ocupar no ataque, o futebol fica mais dinâmico e a gente vai em frente, são os anos 80.

Todo mundo achava bonita a resposta da Dinamarca ao novo movimento tático do futebol. Pela primeira vez um sistema com três zagueiros servia como reação a um jogo com dois atacantes. Os laterais estavam liberados para explorar um espaço mais à frente, aquele ponta que virou volante agora era zagueiro, e na linha crucial do jogo, uma defesa com três estava em maioria teórica. Até de “Dinamáquina” aquele time que brilhou na Euro-84 e na Copa do Mundo de 86 foi chamado. A paulada nas oitavas, Espanha 5×1 Dinamarca, não abalou a crença no 3-5-2.

No futebol, novidade a gente só gosta na casa dos outros. Fomos muito resistentes ao 3-5-2 no Brasil. Sebastião Lazaroni usou o esquema para a Copa seguinte, em 1990, e os brasileiros nunca tiveram boa-vontade com ele desde então. Zagueiros ótimos não faltavam. Mauro Galvão, Ricardo Rocha, Ricardo Gomes, Aldair, Mozer. Não tá bom? Você não apostaria neles? O Brasil venceu os três jogos da primeira fase, e foi muito bem contra a Argentina, nas oitavas. Perdeu, porque o futebol é assim mesmo, porque Maradona é Maradona.

O 3-5-2 foi excomungado. Nunca tivemos muita paciência para debater o futebol por linhas táticas, mesmo, era mais fácil bancar o conservador e pedir, como já se pedia em 1982, para “botar pontas”, “tirar um beque”, negar o que fazia sentido de ser buscado. Vinha Parreira no caminho da seleção, a pessoa certa para quem não quer construir nada de novo, moderno ou original no futebol. Assim como a derrota tudo explicou em 1990, a vitória de 94 tratou de justificar tudo que foi feito entre 1991 e a Copa. A Dinamarca venceu a Euro de 92, mas fala baixinho com qual esquema tático foi usado…

O Brasil foi pentacampeão do mundo em 2002 usando três zagueiros, um trio que protegia as subidas de Cafu e Roberto Carlos, e que só encaixou pra valer quando um meia, Juninho, deu lugar a um jogador mais defensivo, Kleberson. Um nó na cabeça dos simplistas. Um acerto do bronco de bigode. A taça que deu ao 3-5-2 um lugar à sombra. Copa do Mundo já foi o encontro de escolas de futebol e seus diferentes modelos de jogo. O mundo de hoje já quase não nos reserva surpresas sobre isso.

76 – AS TRÊS ESCOLHAS DE ARGENTINA E UMA SEQUÊNCIA INÉDITA ENTRE CAMPEÕES

Alemanha x Argentina, 2006. Lá em Berlim, todo o ar decidido a entrar nos pulmões do time da casa, ambiente opressivo aos sul-americanos, mas jogo bão, bem bão, que o time do Jose Pekerman era osso duro de roer e tinha uma trinca poderosa, Riquelme, Tevez e Crespo, quatro do segundo tempo, gol, Argentina na frente, 1×0, vai dar, mas não: aos 27 do segundo tempo, sai Riquelme, entra Cambiasso, aos 33 sai Crespo e entra Julio Cruz, e aos 35 a Alemanha empata. Pekerman se via sem seus dois mais inteligentes jogadores e sem a vantagem. A eliminação veio só nos pênaltis, mas a imprensa local, que ainda via o menino Messi no banco, lamentou a precipitação do técnico.

Alemanha x Argentina, 2010. Na Cidade do Cabo, os argentinos tinham uma realidade em campo, Messi, e um deus fanfarrão no banco de reservas, Maradona, que, entre outras coisas, negou a Riquelme, agora já quase um veterano, vaga na equipe. A chance de revanche virou poeira, e o técnico argentino foi o maior responsável pelo 4×0 acachapante. Tirou Otamendi, colocou Pastore, e resolveu jogar sem lateral direito. No deserto que virou o setor, a Alemanha marcou três gols nos 25 minutos finais. As escolhas erradas dos nomes agora também era acompanhada da pouca leitura como técnico daquele que foi, com chuteira no pé, um dos mais geniais de sempre. O planeta todo enxergava por onde saíam os gols, foi um massacre didático.

Alemanha x Argentina, 2014. Pela terceira Copa seguida, agora em uma final, os rivais, que se pegaram também nas finais de 1986 e 1990 – uma vitória para cada – tinham igualdade de chances, em parte porque a Argentina, que tinha o agora unânime e inesquecível Messi, contava com um mar de torcedores que transformaram o Rio de Janeiro na capital mundial da picardia. Festa sem precedentes por toda a sexta, todo o sábado e até o apito inicial. Dessa vez o comandante dos sudacas atende por Alejandro Sabella, e sua função é barrar Aguero, longe de sua melhor condição física, em troca de Lavezzi, seu substituto natural. Aguero entrou, baleado mesmo, logo no intervalo, e pouco fez. Claro que, depois da derrota, muitos questionaram Sabella, que apostou não apostando, e cedeu sem ceder (e nem vamos falar de Higuaín…).

Em 2018, Argentina e Alemanha, caso vençam seus grupos, se enfrentam apenas em uma semifinal. Caso um deles fique em segundo do grupo, só se encontrarão em uma final. Agora Messi é um trintão em sua melhor versão, mas a Argentina nunca pareceu tão distante da Alemanha em performance e material humano. No entanto, eu duvido que vá perder quatro vezes seguidas. Mentira, não duvido não.

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