Por Luiz Felipe de Carvalho
Há quem se lembre de quanto foi o Atlético Mineiro x Botafogo do Brasileirão de 1998. Eu tenho seres estranhos assim em minha família. Não é meu caso. No entanto, gosto bastante de futebol. Digamos que entre os “cinco mais” de meus interesses, cinema e música se revezaram na primeira e segunda posição durante toda a vida, com viagens, cerveja e futebol se revezando nas posições seguintes. De modo que não poderia deixar passar a oportunidade de trazer uma lista de canções sobre futebol, aproveitando uma recente edição do podcast Travessia (que pode ser ouvido aqui) que trata sobre o tema.
(um aparte: escolhi de forma aleatória o jogo de exemplo ali acima, e fui pesquisar só de curiosidade. E não é que teve um 5×5 entre Atlético Mineiro e Botafogo no Brasileirão de 1998? Ou seja, provavelmente os tais seres estranhos de minha família realmente se lembram do jogo)
Para quem não conhece, o Travessia é um podcast sobre música, que traz a cada programa um tema diferente. A curadoria sempre busca dez músicas associadas àquele tema, e os apresentadores – e curadores – Fernando Vives e Caio Quero, após a execução da faixa, trazem comentários e contexto histórico da canção. Nesta edição sobre futebol a curadoria, excepcionalmente, foi do Leandro Iamin (um especialista em futebol), que apresentou o programa junto de Fernando Vives.
Para minha seleção, o único critério foi escolher músicas que estivessem em minha coleção de discos, para que eu não ficasse maluco durante a pesquisa (não adiantou, porque eu fiquei maluco durante a pesquisa). Por sugestão de meu irmão (um daqueles “seres” de minha família, que mencionei acima, e que inclusive me ajudou com a lembrança de duas das faixas escolhidas) fiz a seleção de onze músicas ao invés de dez – por motivos óbvios, né? Minha lista também serve para reparar um equívoco da curadoria do senhor Leandro Iamin, que não escolheu uma música sequer sobre o maior time do Brasil.
Tentei colocar uma ordem cronológica, como é praxe no Travessia, embora esta cronologia se quebre em alguns momentos, porque ora utilizei como critério a data de composição, ora a data da gravação escolhida para entrar aqui – e tem ainda o caso de uma canção dos anos 1940 que só recebeu letra em 1994.
Sem mais, às músicas, pois.
1 – Futebol da Bicharada – Composição: Raul Torres – Interpretação: Rolando Boldrin
A versão que tenho em disco, e que coloco aqui, é de um álbum de Rolando Boldrin lançado em 1979, só com músicas de Raul Torres e João Pacífico. Esta composição é só de Raul Torres, e a primeira versão foi gravada em 1942, pela dupla Raul Torres e Serrinha, em um compacto simples. A letra trata de um jogo entre os times do Quebra-dedo e do Pé-rapado, um clássico da fazenda, e os jogadores, como o título indica, são os animais.
O jogo termina em confusão, e a música termina com uma brincadeira com o jogador veado, que talvez não soasse bem hoje em dia, mas é complicado analisar algo feito há quase oitenta anos com os ouvidos de hoje. De qualquer maneira, a letra é divertidíssima, mesmo sem isso.
Curiosidade: João Kleber, aquele mesmo do Teste de Fidelidade, participa da faixa fazendo uma breve imitação do locutor esportivo Walter Abrahão.
2 – 1×0 – Composição: Pixinguinha/Benedito Lacerda/Nelson Ângelo – Interpretação: Arranco de Varsóvia
Segundo Sérgio Cabral (o pai, não o filho), em sua biografia sobre Pixinguinha (“Pixinguinha, vida e obra”), esta canção teria sido escrita para homenagear um jogo entre Brasil e Uruguai pelo sulamericano de 1919, com gol solitário de Friedenreich, que garantiu o título ao Brasil. Pixinguinha e Benedito Lacerda, co-autor da canção, fizeram a gravação, ainda sem letra, mas já com o título de “1×0”, em 1946.
Quarenta e oito anos depois, em 1994, o mineiro Nelson Ângelo botou-lhe uma bela letra, e gravou a canção em seu disco “A vida leva”, em dueto com Chico Buarque. Mas a versão incluída aqui foi gravada pelo grupo vocal carioca Arranco de Varsóvia, e está presente no disco “Agô, Pixinguinha!”, lançado em 1997, em homenagem aos cem anos do mestre. A letra se encaixa à perfeição na melodia, e não parece haver décadas de distância entre as duas.
Curiosidade: quem assistia ao Bate-Bola, da ESPN, em tempos de José Trajano, vai se lembrar que esta era a música tema do programa, nesta versão.
3 – Um a Um – Composição: Edgar Ferreira – Interpretação: Paralamas do Sucesso
Esta música entraria mais à frente na lista, porque a versão aqui incluída é de 1995, mas não resisti à tentação de colocar “Um a um” logo depois de “1×0”. Apesar das diferenças de resultado e de grafia, são duas canções que colocam o resultado do jogo em seu título. Se naquela o jogo de fato foi 1×0, nesta aqui o recado é que o jogo não será um a um, porque “se meu time perder é zum-zum-zum”.
O compositor, Edgar Ferreira, foi muito prolífico em Pernambuco nos anos 1950 e 1960. Jackson do Pandeiro gravou em 1954, com muito sucesso (segundo ele próprio, o 78 rotações vendeu mais de 3 milhões de unidades). Mas conheci a música com os Paralamas do Sucesso, no álbum ao vivo “Vamo batê lata”, de 1995.
A versão dos Paralamas perde o contracanto presente na versão de Jackson, que traz o já citado “se meu time perder é zum-zum-zum” após o verso “esse jogo não é um a um”, repetido diversas vezes durante a música. Mas ganha um pouco de peso, um naipe de metais foda e os versos dedicados a Romário, Bebeto, Viola e Ronaldo, atacantes da recém-campeã seleção brasileira (o show foi gravado em dezembro de 1994). Herbet Vianna também se furta de fazer uma graça presente na versão de Jackson do Pandeiro, que faz uma troça ao final, dizendo que viu com “os olhos que a terra há de comer”, que um rapaz tirou o calção do outro no meio do jogo (tenho pra mim que esta foi uma decisão inteligente de Herbert, porque exigiria um tipo de talento que ele não tem). Em resumo: ouça a versão dos Paralamas, mas ouça também a de Jackson, que é impagável (dê preferência à versão do programa Ensaio, da TV Cultura).
Curiosidade: a letra não fala de um time específico, e dá uma miguelada para abraçar os três grandes de Pernambuco – e mais outros tantos do Brasil inteiro – quando diz “é encarnado e branco e preto” (Santa Cruz), “é encarnado e preto” (Sport) e “é encarnado e branco” (Náutico), sendo que “encarnado” aqui, para quem não sabe, é o popular “vermelho”.
4 – A Taça Era Dela – Composição: Waldemar Silva/Rubens Campos – Interpretação: Jackson do Pandeiro
Se Jackson do Pandeiro não entrou na lista por um pequeno detalhe na canção anterior, agora ele surge com toda sua malemolência nesta faixa inclusa no disco “A braza do Norte” (com esta grafia mesmo), lançado em 1967. A dupla de compositores, Waldemar Silva e Rubens Campos, pode não ser tão conhecida, mas suas canções foram gravadas por quase todo mundo que importava em meados do século passado (Angela maria, Silvio Caldas, Francisco Alves, Agnaldo Timóteo, entre muitos outros).
Esta letra fala da Copa do Mundo de 1966, sugerindo algo que muitos desconfiam: que a copa foi armada para a Inglaterra ganhar. A letra, bem curta, parte do pressuposto de que a campeã já estava definida antes de o campeonato começar, e “o mundo todo caiu na esparrela” – ou seja, foi todo mundo enganado.
Curiosidade: dá para entender porque Jackson estava meio puto com a Inglaterra. Antes da copa de 1966 ele chegou a lançar um compacto com a canção “Frevo do tri”, já contando com o terceiro título seguido da seleção brasileira. Mas aconteceu o que aconteceu, e obviamente o disco não vendeu nada (hoje é um disco raríssimo). O “Frevo do tri” ficou em banho-maria, mas foi finalmente (re)lançado em 1969, novamente antes da copa – mas dessa vez deu tudo certo, porque no ano seguinte o Brasil foi tricampeão mundial.
5 – O Jogo – Composição: Pacífico Mascarenhas – Interpretação: Milton Nascimento
Tenho essa música como faixa bônus do disco “Milton”, lançado por Milton Nascimento em 1970. O encarte não traz detalhes sobre as faixas extras, e também não consegui encontrar na internet a informação sobre a voz feminina que faz dueto com Milton aqui (se alguém souber, dê um toque nos comentários). Pacífico Mascarenhas, o autor da canção, é mineiro, e amigo pessoal de Tostão. Pacífico fez parte da Turma da Savassi, um grupo que se encontrava em frente à Padaria Savassi, de Belo Horizonte, nos anos de 1950 e 1960.
A faixa faz parte da trilha sonora do documentário “Tostão – A Fera de Ouro”, sobre o craque mineiro. Além de ser uma boa música, ela vem para redimir o jogador, que não tem lá um retrato muito lisonjeiro na faixa “Meio de campo”, de Gilberto Gil, inclusa na seleção do podcast Travessia, que traz o verso “E eu não sou Pelé nem nada/ Se muito for eu sou um Tostão”.
Curiosidade: Belo Horizonte tem um bairro chamado Savassi, mas ele só existe oficialmente com este nome desde 2006. Ou seja, a padaria, e a Turma da Savassi, são anteriores à existência do bairro propriamente dito.
6 – Vicente – Composição: Renato Teixeira – Interpretação: Renato Teixeira e Sócrates
Renato Teixeira é santista, além de ter apreço pelo Taubaté, clube paulista de sua cidade natal. Mas, segundo entrevista dada ao jornal Lance em 2020, fez essa música em homenagem a Vicente Matheus, lendário presidente do Corinthians, porque é um “sujeito com uma história muito bonita, um espanhol que veio para cá, teve uma infância pobre e depois ficou rico devido ao seu trabalho. E além disto, ele tinha aquelas expressões engraçadas”. Sim, Vicente ficou famoso por falar coisas engraçadas como “faca de dois legumes” ou “o Sócrates é inegociável, invendável e imprestável”.
Falando em Sócrates, ele participa da gravação, cantando a segunda estrofe sozinho, e depois fazendo dueto com Renato na terceira estrofe e no refrão. No finalzinho ainda tem um diálogo divertido, em que Renato “oferece” cinquenta mil réis pro Sócrates ir jogar no Taubaté, e o doutor responde que “tem que falar primeiro com ele (Vicente), ele é que manda”.
Curiosidade: nesta época Renato estava na gravadora RCA, e no mesmo ano Sócrates tinha gravado um disco de música caipira, chamado “Casa de caboclo”, pela gravadora, e foi assim que Renato decidiu chamá-lo.
7 – Eu Quero Ver Gol – Composição: Falcão/Xandão/O Rappa – Interpretação: O Rappa
Uma música que exala carioquice, falando sobre um domingão de sol em que o torcedor sai de sua casa na comunidade, dá uma passada na praia e depois segue pro maraca pra ver seu time jogar. O Rappa nunca deixou de lado as questões sociais que afligem o Brasil, mais precisamente o Rio de Janeiro, e aqui o futebol surge, junto com a praia, como a panaceia para a vida sofrida, onde o gol, que “nem precisa ser de placa”, pode trazer a redenção momentânea. Mas tem alegria aqui também, um bocado dela, já que é uma música, afinal, sobre praia e futebol. Também fala de um Maracanã que não existe mais, quando a letra diz “tô com a geral no bolso, garanti meu lugar”, sendo que o Maracanã hoje é uma arena sem dono e sem geral (a área do estádio que custava mais barato, e em que as pessoas viam o jogo de pé). O Rappa lançou a música em 1996, no disco Rappa Mundi, cheio de sucessos como “A feira” e “Pescador de Ilusões”.
Curiosidade: é possível ouvir, na mixagem da faixa, alguns barulhos de torcida surgindo no fundo, especialmente durante os refrãos.
8 – No Meio da Área – Composição: Zé Geraldo – Interpretação: Zé Geraldo
Uma das provas do amor do brasileiro pelo futebol é a capacidade de usar o esporte também como metáfora. Esta música de Zé Geraldo não fala exatamente sobre futebol, mas usa sua linguagem, seus jargões e sua alegria para se referir à vida. Quando ele diz, por exemplo, “Trate a moça com carinho/ Cuidado com a marcação” ele se refere à moça, mas também à bola. A faixa encerra de maneira festiva o álbum de mesmo nome lançado por Zé em 1998, com um ritmo que lembra um côco durante toda a faixa, e a parte final lembrando um samba enredo, com uma apoteose de tambores, tão alegre quanto o futebol deveria ser, sempre.
Curiosidade: a faixa tem participação da banda capixaba Manimal, que tem como marca o uso dos tambores de congo. Queiroz, seu baterista e percussionista, morreu do coração em 2008, e desde então a banda deu uma diminuída no ritmo, muito embora não tenha acabado oficialmente.
Observação: só existe no YouTube uma versão do álbum completo, então para ouvir a música vá direto para o minuto 37:50 do vídeo abaixo. Ou ouça o disco inteiro, que é muito bom!
9 – Jesus Errou o Pênalti – Composição: Thunder (?) – Interpretação M.Á.Q.U.I.N.A.
Perceba que há uma interrogação ao lado do nome do autor dessa música. Não tenho mais este cd (fiz uma doação para alguém que precisava mais do que eu), e é dificílimo achar informações da ficha técnica na internet. Mas eu sei que Thunder, vocalista e guitarrista, era o principal compositor da banda, que não existe mais. O M.Á.Q.U.I.N.A. surgiu como Máquina P.E.L.U.D.A. e gravou um primeiro disco em 1996, abreviando depois o nome e lançando outro disco em 2001. Suas letras sempre faziam referência a elementos de cinema, quadrinhos e literatura, e também a questões sociais.
Aqui a letra imagina um jogo de futebol entre a “Igreja Universal do Reino Podre do Dinheiro Sujo” e a “Igreja Católica Apostólica Romana Nazista”, em que Jesus bate um pênalti na trave, e a torcida quer matá-lo. Iconoclasta até o talo, baby. Para além da letra, a música tem uma energia absurda, e um refrão delicioso, que se encerra com um “Puta que pariu!” cantado pela torcida.
Curiosidade: a frase que estampa a capa deste disco, logo acima do olho remendado, que pode ser visto aí abaixo no vídeo, é do livro “1984”, de George Orwell.
10 – Canhoteiro – Composição: Fagner/Zeca Baleiro/Fausto Nilo/Celso Borges – Interpretação: Fagner e Zeca Baleiro
Meu pai sempre dizia que Canhoteiro era um gênio. Muitos diziam que era o “Garrincha da ponta esquerda”. O jogador nasceu no Maranhão, terra de Zeca Baleiro, jogou no estado do Ceará, terra de Fagner, e veio para São Paulo fazer carreira, como os dois. Foi essa “ponte entre as biografias”, como disse Fagner, que fez a dupla escolher a canção para abrir o disco que fizeram juntos em 2003. Apesar de um ser santista (Zeca) e o outro torcer pelo Fortaleza (Fagner), a história do craque são-paulino foi usada para simbolizar um futebol que, segundo os autores, não existe mais.
Canhoteiro fez 415 jogos pelo tricolor, e marcou 105 gols. Esta música vem, então, reparar a imperdoável falha de não haver nenhuma música sobre o maior time do Brasil no podcast Travessia dedicado ao tema. Hmpf.
Curiosidade: a faixa se inicia com a narração de um gol de Canhoteiro contra o XV de Piracicaba, na voz do locutor Braga Junior, que segundo o site do Milton Neves é o único profissional da narração que trabalhou na Copa de 1958 e ainda está vivo.
11 – A Incrível História de Mauro Shampoo – Composição: Oswaldo Montenegro – Interpretação: Oswaldo Montenegro
Eu tenho essa música como faixa bônus do disco “A Partir de Agora”, lançado por Oswaldo em 2007. Mas na verdade ela faz parte da trilha sonora do documentário “Mauro Shampoo – Jogador, Cabelereiro e Homem” (que pode ser visto de graça no Porta Curtas, aqui), de 2005.
Mauro Shampoo era jogador do Íbis, clude recifense que ficou famoso ao entrar para o Guiness Book como o pior time do mundo, depois de ficar quase quatro anos sem ganhar uma única partida. Mauro Shampoo foi seu centroavante titular por dez anos, e fez apenas um gol, em uma derrota por 8×1. Ingredientes suficientes para Oswaldo Montenegro encaixar sua poesia, com versos como “É no gol contra que se testa a alegria/Gol de placa é fantasia/Pois baião não é blues”. A fama proveniente da falta de destreza não veio de maneira proposital, mas tanto o Íbis quando Mauro Shampoo usaram-na para capitalizar um pouquinho. É uma história maluca que só poderia acontecer no Brasil, por tudo de lindo e de triste que traz.
Curiosidade: a canção tem participação da atriz e cantora Mariana Rios, que havia feito dois musicais com Oswaldo, e em 2008 foi para a Globo.
12 – Marchinha do São Paulo – Composição: Juca Chaves – Interpretação: Juca Chaves
E no banco de reservas, envergando a camisa 12, Juca Chaves traz mais uma sobre o maior time do Brasil, só pra encerrar em alto astral. A canção foi lançada em 1980, iniciando uma década que viria recheada de títulos para o São Paulo, assim como a década de 1990 e a primeira década dos anos 2000. Sobre a década seguinte? Melhor deixar pra lá…