De Luiz Felipe de Carvalho
No final de 1965, um jovem norte-americano chamado Brian Wilson estava a imaginar para onde levaria o som da banda que liderava, chamada The Beach Boys. Brian tinha apenas 23 anos, mas já demonstrava uma inquietude e um grau de perfeccionismo e de cobrança interna que o fariam levar os Beach Boys ao mais alto grau artístico – e também cobrariam o preço em sua saúde mental. Brian era um compositor tão prolífico que, apenas em 1965, os Beach Boys já haviam lançado três long plays. Com sucesso de crítica e de público, o que fazer depois?
A resposta veio lá da Inglaterra. Em dezembro de 1965, os Beatles lançaram o álbum Rubber Soul, que inaugurou uma nova era na carreira da banda, encerrando a fase “inocente e tribal”, nas palavras de John Lennon. Esse disco foi o catalisador de muitas mudanças. Vários artistas do mundo inteiro, ao ouvirem o trabalho, se lançaram na tentativa de igualar o nível atingido pelos cabeludos ingleses. Brian Wilson foi um deles. Veja o que ele mesmo escreveu em março de 1990:
“Em dezembro de 1965, eu ouvi o álbum Rubber Soul, dos Beatles. Foi definitivamente um desafio para mim. Eu vi que cada faixa era artisticamente interessante e estimulante. Imediatamente comecei a trabalhar nas canções de Pet Sounds. […] Eu definitivamente senti a necessidade de competir com os Beatles”.
Existe uma ressalva importante a ser feita, e que eu só me apercebi lendo um artigo escrito pelo escritor musical Rob Sheffield na edição de outubro de 2020 da Revista Mojo: o Rubber Soul que Brian, e tantos outros artistas americanos, ouviram e se inspiraram, não é o Rubber Soul canônico, por assim, dizer, lançado na Inglaterra. Isso porque, naquela época, a gravadora Capitol fazia edições diferentes para o mercado americano, basicamente amassando ao máximo os discos, para lançar mais quantidade e vender mais. Para se ter uma ideia, os sete primeiros álbuns da banda foram transformados em onze versões americanas. Assim, o Rubber Soul americano, que Brian ouviu, não tinha quatro faixas da versão inglesa (“Drive my car”, “Nowhere man”, “What goes on” e “If I needed someone”), mas em compensação tinha duas faixas do disco anterior, Help! (“I´ve just seen a face” e “It´s only love”).
Isso posto, a pergunta que esta coluna busca responder é: Brian Wilson e seus Beach Boys conseguiram superar os Beatles?
Lá se vão mais de cinquenta anos de debate, e não existe uma resposta definitiva. Na ausência de uma maneira justa de definir essa insone questão, resolvi fazer da maneira mais injusta possível. Em primeiro lugar, vai valer somente a minha opinião e meu gosto pessoal sobre as canções. Em segundo lugar, resolvi fazer a disputa de um jeito, digamos, inusitado. Sabe aqueles programas de debate sobre futebol, em que pra decidir se um time é melhor que o outro os comentaristas fazem disputas posição por posição, e depois veem quem ganhou mais embates? Convenhamos, mais injusto, estúpido – e divertido! – impossível.
Como foi a versão americana que Brian ouviu, é com esta que vou comparar. O que traz um outro problema: Rubber Soul tem doze faixas e Pet Sounds tem treze faixas. Entre as várias ideias injustas que vieram à minha mente para resolver tal dilema, cheguei a pensar em simplesmente eliminar uma das faixas instrumentais de Pet Sounds, só porque eu não gosto de faixas instrumentais. Ou eliminar “Sloop John B”, que não foi gravada para as sessões de “Pet sounds”, mas acabou entrando no disco por ter sido lançada como single um pouco antes. Mas achei melhor acrescentar do que retirar. Então vai entrar na dança a faixa “Hang on to your ego”, dos Beach Boys, que foi gravada nas mesmas sessões de gravação para Pet Sounds, mas só foi lançada muito tempo depois (na verdade ela é uma primeira versão de “I know there´s an answer”, que está presente no álbum). Com isso totalizamos quatorze faixas dos Beach Boys. E vão entrar as duas faixas de um single lançado pelos Beatles também em janeiro de 1965, e que foram gravadas nas mesmas sessões de gravação de Rubber Soul: “Day tripper” e “We can work it out”. Com isso teremos quatorze lutadoras de cada lado, e o card de combates ficou assim:
1 – I´ve just seen a face x Wouldn´t it be nice. 2 – Norwegian Wood x You still believe in me. 3 – You won´t see me x That´s not me. 4 – Think for yourself x Don´t talk. 5 – The word x I´m waiting for the day. 6 – Michelle x Let´s go away for a while. 7 – It´s only love x Sloop John B. 8 – Girl x God only knows. 9 – I´m looking through you x I know there´s an answer. 10 – In my life x Here today. 11 – Wait x I just wasn´t made for these times. 12 – Run for your life x Pet sounds. 13 – Day Tripper x Caroline no. 14 – We cann work it out x Hang on to your ego.
Agora é hora do pau cantar. Aos combates, pois:
Combate #1: I´ve just seen a face x Wouldn´t it be nice
Ficou bastante complicado para “I´ve just seen a face”. Sabe quando um lutador sai meio Mike Tyson, meio Victor Belfort, destruindo logo nos primeiros segundos de luta? É o que a introdução da canção dos Beach Boys faz aqui, iniciando um processo de pegar o ouvinte pela zoreba e só largar depois de dois minutos e trinta segundos de deleite puro. Paul Mccartney, fazendo dueto consigo mesmo, tenta devolver, e consegue alguns golpes, mas é insuficiente. Se serve de consolo aos Beatles, “Drive my car”, que abre o Rubber Soul “de verdade”, também não teria chances.
Vencedora: Wouldn´t it be nice (Pet Sounds)
Combate #2: Norwegian wood x You still believe in me
Brian Wilson é um grande filho da puta. Mesmo aqui, em uma disputa que seria simples, já que “Norwegian wood” é uma das minhas músicas preferidas da vida, ao ouvir as duas faixas em seguida eu ainda fiquei em dúvida. Porque “You still believe in me” é sublime, parece cantada por querubins. Mas os Beatles vencem por um pêlo (ei, acordo ortográfico, vá-te à merda, o pêlo é meu e eu ponho acento). Ou por uma cítara do George Harrison.
Vencedora: Norwegian wood (Rubber soul)
Combate #3: You won´t see me x That´s not me
Mais uma disputa bastante sangrenta, mas que termina com vantagem para os rapazotes de Liverpool. “That´s not me” disputa bem, tem um bom começo de luta, com a voz de Mike Love entrando junto com o teclado, e depois com as tradicionais, e sempre lindas, harmonias vocais dos rapazotes da Califórnia. Mas quem resiste aos Beatles fazendo “oh la la la” durante toda uma faixa? Eu certamente não resisto.
Vencedora: You won´t see me (Rubber Soul)
Combate #4: Think for yourself x Don´t talk
Primeira – e única – composição de George Harrison a aparecer nestas disputas, “Think for yourself” tem um clima vibrante, uma guitarra distorcida interessante, mas o que eu mais gosto nela são as harmonias vocais feitas pelos amiguinhos John e Paul. Ainda assim, “Don´t talk” para mim é a quintessência do pop barroco dos Beach Boys, cheia de lindos detalhes, um arranjo de cordas de babar na roupa e uma das canções de amor mais doces já feitas.
Vencedora: Don´t talk (Pet Sounds)
Combate #5: The word x I´m waiting for the day
Desde que conheci o Rubber Soul, lá com meus quinze anos, sempre achei “The word” um pouco chata, com a melodia repetitiva, e o final que parece que alguém simplesmente falou “mete um fade out aí que já deu”. Hoje acho importante que tenha sido uma das primeiras músicas pop a falar do amor como um conceito universal, e não apenas aquela coisa de “moçoilo gosta da moçoila e quer pegar na mão dela”. Mas ainda assim a linda “I´m waiting for the day” não teve muito trabalho pra ganhar essa contenda, com suas mudanças de tempo, de dinâmica, além da linda melodia – o que é um pouco redundante de escrever em relação às faixas de Pet Sounds.
Vencedora: I´m waiting for the day (Pet Sounds)
Combate #6: Michelle x Let´s go away for a while
“Let´s go away for a while” é linda. Segundo Brian Wilson, foram usados doze violinos, piano, quatro saxofones, oboé, dois contrabaixos, percussão, entre outros quetais, para gravar a faixa. Que, repito, ficou linda. Mas o tempo todo eu fico esperando entrar alguém cantando, e não entra. Com isso, a adorável Michelle, que Paul McCartney escreveu primeiro como uma brincadeira, acaba levando a melhor, com a história do cara que se apaixona pela garota francesa, que só entende “I love you”.
Vencedora: Michelle (Rubber Soul)
Combate #7: It´s only love x Sloop John B
A disputa de uma faixa que não pertence ao Rubber Soul original contra uma faixa que não foi gravada especificamente para o Pet Sounds. “It´s only love” tem uma bela melodia, mas o próprio autor, John Lennon, disse “sempre tive vergonha dela por causa da letra abominável”. Não posso discordar de John. Já “Sloop John B” é uma versão dos Beach Boys para uma tradicional canção folk das Bahamas. O arranjo, pra variar, é riquíssimo, e a letra não envergonha ninguém, por isso a vitória é dela.
Vencedora: Sloop John B (Pet Sounds)
Combate #8: Girl x God only knows
“Girl” também é uma faixa composta majoritariamente por John Lennon, assim como “It´s only love”. Mas a letra de “Girl” é muito boa, fazendo críticas veladas ao cristianismo, inclusive. E eu poderia enumerar muitos outros predicados da faixa. Mas seria puro blablablá. A disputa é contra “God only knows”, a canção que o próprio Paul McCartney já disse ser “a melhor música já escrita”. Discordar de um beatle vai contra tudo em que acredito, portanto “God only knows” vence fácil essa disputa.
Vencedora: God only knows (Pet Sounds)
Combate #9: I´m looking through you x I know there´s an answer
Não era tarefa fácil para Brian Wilson. Fazendo estas comparações, ouvindo primeiro a faixa dos Beatles, estou sentindo na pele uma fração do que ele sentia ao tentar igualar ou melhorar o que a banda inglesa tinha feito. Aqui, por exemplo, temos “I´m looking through you”, uma das faixas mais irresistíveis dos Beatles, com um arranjo semi-acústico com violões, um riff de guitarra de pular da cadeira e lindas harmonias vocais. “I know there´s an answer” é uma bela faixa, e talvez ganhasse muitas outras disputas. Mas, aqui, não deu.
Vencedora: I´m looking through you (Rubber Soul)
Combate #10: In my life x Here today
Comecemos falando sobre a perdedora. “Here today” é um canção sobre a efemeridade do amor, de um ponto de vista bem interessante: é um cara avisando a outro cara que a mina, que era ex-namorada do primeiro cara, iria fazê-lo sofrer. Mais uma vez, uma faixa que encararia a briga com muitas outras de Rubber Soul. Mas de outro lado temos simplesmente “In my life”, uma das coisas mais lindas que o senhor John Lennon já fez, e uma das primeiras vezes em que demonstrou fragilidade, nostalgia e um pouco do que ia, de verdade, em seu coração. Praticamente imbatível.
Vencedora: In my life (Rubber Soul)
Combate #11: Wait x I just wasn´t made for these time
Eu diria que este é um combate de pesos leves. Estão longe de serem minhas músicas preferidas dos dois álbuns. “Wait”, inclusive, foi gravada para “Help!”, o disco anterior dos Beatles, mas foi deixada de lado. E só entrou em Rubber Soul porque faltava uma música para completar o disco. Eu concordo com os rapazes, é medíocre, no mínimo. Assim como “I just wasn´t made for these times”, que é bela (eu sei, isso é redundante quando falamos de composições de Brian Wilson), mas não se destaca. Claro, estamos falando de canções medíocres de duas das maiores bandas da história, então tem coisa boa a se apreciar. Mas “I juts wasn´t made for these times” ganha por um theremin de distância (um instrumento que se toca sem encostar nele, e que provavelmente foi usado aqui pela primeira vez por uma banda de rock).
Vencedora: I just wasn´t made for these times (Pet Sounds)
Combate #12: Run for your life x Pet sounds
A culpa é toda minha, Mr. Brian Wilson. Eu realmente não tenho apreço por faixas instrumentais em álbuns de música pop. Sempre me parece que falta algo. Eu até gosto do clima meio Ray Conniff da música que dá título ao seu álbum. Mas ainda assim, mesmo “Run for your life”, que não consta entre minhas favoritas dos Beatles, acaba vencendo a luta. Lamento.
Vencedora: Run for your life (Rubber Soul)
Combate #13: Day Tripper x Caroline no
Difícil, muito difícil. Comparar estas duas músicas é como comparar um búfalo a uma rosa. São incríveis representações da natureza, belos às suas maneiras, mas completamente distintos. “Day tripper” é um búfalo, e o riff de guitarra, um dos mais famosos do rock, são os chifres. “Caroline, no” é uma rosa, exalando aromas nos vocais quase infantis de Brian Wilson (aliás, é a canção preferida de Brian Wilson no álbum). O final da faixa traz os latidos dos dois cachorros de Brian, chamados Banana e Louie. Ok, a banana me convenceu. “Caroline, no” vence por pontos.
Vencedora: Caroline, no (Pet Sounds)
Combate #14: We can work it out x Hang on to your ego
Em 1965, Paul McCartney namorava com Jane Asher, uma jovem à frente de seu tempo. Preocupada com a própria vida, ela simplesmente se mudou de Londres para outro canto da Inglaterra, para tocar a carreira de atriz. Paul não curtiu muito, e a crise na relação fez ele compor “I´m looking through you” e esta “We can work it out” (eita crise de relação produtiva!). Curiosamente, “I´m looking through you” venceu o combate com “I know there´s an answer”, que é basicamente a mesma música do que esta “Hang on to your ego”, com letra ligeiramente diferente. Mais uma vez encarando um adversário de peso, não deu para os Beach Boys. A dor de cotovelo provocada por Jane Asher se mostrou invencível no ringue.
Vencedora: We can work it out (Rubber Soul)
Placar final: Rubber Soul 7 x 7 Pet Sounds
Antes eu tivesse feito de propósito. Não o fiz. O placar final é justo, justíssimo, literal e figurativamente. Com “Pet Sounds”, Brian Wilson e os Beach Boys igualaram o trabalho daquela que é considerada a maior banda de todos os tempos. E a partir deste momento qualquer disposição em contrário se torna nula (sim sim, sabemos que depois os Beatles fariam “Revolver” e depois “Sgt. Peppers”, e ficaria difícil competir. Mas em dezesseis de maio de 1966 os Beach Boys alcançaram a grandeza máxima à qual uma banda pode aspirar).
P.S.: todas as informações acima que não vieram de minha memória, saíram da citada edição da revista Mojo (outubro de 2020), do encarte da edição especial em CD de “Pet Sounds” (lançada em 2001) e do livro “The Beatles – A história por trás de todas as canções”, de Steve Turner.