Na semana da lamentável marca na história do Campeonato Paulista, a do clássico semifinal com torcida única na Vila Belmiro, é preciso reforçar, como já disse o professor Wilson Gambeta: não vamos esquecer que o futebol é o espetáculo da disciplinarização.
Então ele vai deixando os parques abertos e sendo jogado em espaços construídos, fechados. Há uma progressiva e incessante disciplinarização desses espaços. A arquitetura vai se adaptando e se modificando sempre com o mesmo processo de educar o espectador. Não vamos esquecer que o futebol é o espetáculo da disciplinarização. Ele mostra o embate entre duas forças igualitárias que devem vencer o adversário sem violência. Essa é a moral de todos os esportes, e o futebol é o mais popular de todos. Mas a violência é constantemente coibida, é punida publicamente, então essa é a função também dos espetáculos esportivos.
Ainda não fomos capazes de entender a complexidade da nossa sociedade manifestada num ambiente de paixão futebolística. E vivemos repetindo os mesmos clichês, como se tudo fosse o novo, de uma história de mais de cem anos. Relata O Caminho da Bola, bíblia do futebol em São Paulo redigida pelo historiador Rubens Ribeiro:
Já fora detectada pela APEA [Associação Paulista de Esportes Atléticos] neste ano [Campeonato Paulista de 1923] quando se estranhou o gradativo afastamento das famílias dos espetáculos. Na busca pelo motivo, a APEA constatou a presença de “alguns arruaceiros”, levando-a a solicitar reunião com o secretário da Justiça, a fim de se traçar um plano de combate à violência, que começava a ameaçar as estruturas do futebol, ainda um esporte de elite.
E a melhor está completando 90 anos, qualquer semelhança não é mera coincidência (também do livro de Ribeiro):
(…) Porém, em 1926, essa moda era um pouco mais complicada. Os rapazes não saíam às ruas da pacata cidade de São Paulo, então com cerca de 800 mil habitantes, se não trajassem os tradicionais ternos justos, com gravata e tudo e o já comentado colarinho alto, engomado. O chapéu-coco estava cedendo lugar para a nova moda, a palheta, que era envolvida por fitilhos da cor do clube para o qual o jovem torcia. Agora, neste ano, como complemento indispensável, do mais alto refinamento, os moços desfilavam pelos passeios da cidade exibindo bengalas de cabos encastoados de prata e até de ouro, nos quais se gravava as iniciais de seus nomes. Com os casos de violência se registrando com frequência nos estádios, as autoridades policiais recomendaram providências dos responsáveis pelo futebol paulista. Por isso, no dia 28 de maio, os jornais publicaram aviso da APEA, proibindo o ingresso nos estádios de torcedores portadores de bengala.
Para nos fazer pensar quando o comentarista condenar os sinalizadores que fazem o árbitro parar o jogo, ou quando declarar que os torcedores comuns estão lá só para torcer, tsc, ou melhor, quando algum promotor celebrar que o santista que gritará para os palmeirenses na Vila Belmiro verá sua garganta virar eco num setor de visitantes aos farelos. Eduardo Galeano escreveu que não há nada mais vazio que um estádio vazio. Acho que há. Torcer quando se torce só, sem lado de lá, parece anterior a isso.