*por Paulo Junior
O treme-treme do celular pendurado na saída do ar-condicionado indicava a próxima passageira de nome Mercedes, a esperar na Alameda Santos num fim de tarde de manual na cidade mais entupida do país, de sexta-feira são vinte minutos para contornar aqueles 700 metros, garoa delicada para se desculpar por atrasos esperados, a voz que aponta vire à direita engolindo a narração da rádio trânsito, mas essa rádio só fala de trânsito mesmo?, só, e quando não tá trânsito?, então.
Dona Mercedes aparenta uns 65, tem uma mala de viagem daquelas de rodinhas, mas a carrega suspensa com a mão direita sofrendo para equilibrar as pernas, recusando ajuda enquanto o motorista abre a porta traseira, deixa que eu pego, obrigado!, e quando entram no carro o Roberto aperta do botão verde que confirma o início da corrida, 5h40 do destino, apareceu cinco e horas e quarenta minutos, tá certo isso aqui, senhora?, Avenida Vieira Souto, Ipanema, Rio de Janeiro?
– Isso.
– Mas não é melhor a senhora ir de avião, ou pegar um ônibus, porque eu precisaria falar com minha esposa, uma corrida para o Rio de Janeiro, assim, do nada, a gente vai chegar lá meia-noite e pouco, e eu não conheço a cidade para rodar de noite também.
– Vou chamar outro então.
– Não, calma, se eu cancelar a viagem eu perco minhas cinco estrelas.
– Que estrelas?
– A avaliação aqui, pega mal.
– Então prefere me levar?
– Não sei.
– Ué.
– Vamos.
– E as estrelas?
Roberto ligou para a Clara, que disse achar bom e ruim, bom porque ia render uma grana legal e eles estavam precisando, ruim porque ficava preocupada, ir até o Rio de Janeiro, voltar sozinho, essas coisas.
Ela imaginou que poderiam ficar anos sem se ver, a história da esposa cujo marido motorista pegou uma corrida para o Rio de Janeiro e resolveu fazer outra corrida na noite carioca, e outra até de manhã nas avenidas à beira da praia, e quando viu ficou uma década sem dar notícia, dizem que se casou por lá e tem dois filhos que puxam o sotaque como se fossem os sambistas do sofá da Regina Casé, e ela ficou imaginando um reencontro, porque nas primeiras noites madrugadas em claro Clara amaria Roberto como se não houvesse amanhã, até que um dia capricharia no vestido mais bonito e iria descer no samba da Casa Verde como se já estivesse tudo bem, é que quando se perde alguém a única certeza que se tem é que haverá um futuro pela frente, uma sequência de acontecimentos onde o rastro da memória está o tempo todo lhe fazendo tropeçar como aquela brincadeira de criança em que uma se agacha atrás de você e a outra te empurra para você se desequilibrar e levar um tombo daqueles, porque não basta cair, tem horas que parece que tem que ser A Queda, de cinema, inesquecível, e voltando à história da certeza o que deixava a Clara mais aliviada é que o futuro não ia ser tão ruim assim, não pior que o passado, imaginou, de onde vem essa dor de estômago, afinal?
– Alô, meu bem?
– Oi, amor, chegou?, tá no Rio?
– Tô, tô sem sono e tô voltando.
– Chega que horas?
– Umas seis.
– Te amo.
– Até já.
A máquina parou de bater, e Clara colocou a mais bonita camisola esperando o abraço de Roberto ainda antes do dia acordar, mas acabou surpreendida por um sono pesado onde só despregou os olhos às dez, a Marginal Tietê raiando, o celular com uma mensagem não lida.
– Fui trabalhar direto.
Tem um lugarzinho na varanda, são cadeiras de praia, nem as costas alinhadas à janela-porta emperrada, nem viradas totalmente às paredes, tem um lugarzinho meio torto, dá para ver a mesa carretel, um rastro do banco improvisado, o vaso pedindo mais água, as bitucas de palha se empurrando, um isqueiro azul bebê, um cinzeiro cor marrom, tem um lugarzinho que vez ou outra pinta uma tesoura de cortar fita, um martelo procurando dedos, um pincel seco sem tinta, migalhas de biscoito barato, tem um lugarzinho que é o preferido da Clara, torto como eles são, um pé no chinelo e outro apoiado na madeira, porque ela quer ver a mesa, o banco, o vaso e quer fingir ao imaginário fotógrafo desavisado que está sentada ali para esperar pelo pôr-do-sol, mas tem um lugarzinho torto onde ela quer mesmo é ver se tem alguém subindo a escada que vem da rua, ou se tem alguém invadindo a sala chegado da cozinha, quem sabe descendo dos quartos, tem um lugarzinho ali fora (ou seria dentro?), que vão cabendo todos os carinhos e lembranças do Roberto, aquelas que apoiam os dias inesquecivelmente difíceis, porque no fundo um casal não quer ser um quadro na parede, é vivo que às vezes nem aguenta, transborda, atravessa.
– Chegando?
Sem resposta, começou a ler Elena Ferrante, que começa com uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar. Lembrou das oficinas de contos, aqueles exercícios às quartas-feiras onde repetiam em semi-círculo os mantras da narrativa curta perfeita, a força da primeira frase, o desfecho-nocaute, a história oculta, aquelas frases ótimas como um conto é tudo aquilo que você chama de conto, pensou que seria muito mais fácil começar aquela história com uma frase definitiva dessas, que abriria o leque para uma saga de reafirmação e solidão num apartamento da zona norte de São Paulo, era um fim de tarde e meu marido foi para uma corrida no Rio de Janeiro e nunca mais apareceu, imaginou, mas a Olga, em Dias de Abandono, varia entre o vazio e a potência, é claro que o luto da perda faz parte do jogo, mas o barato é o contraste com a faísca do renascimento, alguém lhe disse que toda dor causa também uma delícia, vai ver é assim mesmo, e voltou para o livro da cabeceira, só havia perdido algumas lascas, de resto estava bem, porque quando alguém te pergunta se está tudo bem, está, no fim das contas, está.
– Na rua de casa.
Encantada pelo susto que não houve, foi esperá-lo encostada no batente da porta, copo de café na mão, ontem foi sexta, hoje é sábado, não sabe se a noite foi longa ou curta demais, jamais saberá, vai ver é o tempo, acho que sim, quanto tempo, amor!, tempo?, tempo!, tempo.
*Paulo Junior é jornalista, cineasta, escritor e o responsável por alguns podcasts da casa