*por Paulo Junior
Walter Ferreira não se conforma.
É início da prorrogação entre União Soviética e Uruguai, começo de tarde no Estádio Azteca, quartas-de-final da Copa do Mundo de 70, e o ponta-esquerdo celeste Julio Morales é substituído nos primeiros minutos da prorrogação. Em seu primeiro jogo no torneio, suporta o tempo regulamentar, mas dá lugar a Alberto Gómez, ¿Gómez?, ¿por qué?
Walter Ferreira sabe.
É uma mesa de jovens fisioterapeutas, uns estudantes, outros já dando seus primeiros passos dentro do futebol, apaixonados pela vocação e pelo jogo, o mate à cerveja, mas Walter bebe água, muita. Aquela partida já começou estranha, ninguém nos entende. Durante o hino uruguaio, o time da URSS se desalinhou da cerimônia do encontro, foi aquecer para o meio do campo, se espalhou como se espalham os jogadores aos finais dos hinos nacionais, mas não. É o hino do Uruguai, mi amigo, ainda não acabou, como não sabem? Ninguém se importa com a gente. Não bastasse Paris, Amsterdã, Rio de Janeiro? Rio de Janeiro. Walter adoraria estar no Maracanã, mas no chute de Gigghia seus pais ainda estavam a decidir sobre o filho. Nasceu no ano seguinte, com pouco talento para chutar bolas. Pouco importava agora, afinal.
Faz frio e ele sabe. Morales claramente não se recuperou da cirurgia no joelho. O Morales, do seu Nacional, 11 às costas, saiu, e Walter se sufoca com impressão de que só ele está percebendo. O joelho de Morales. Não está legal, não vai dar desse jeito. Soca a mesa em silêncio, não é possível. A mais importante semana desde julho de 50 e não se deram conta que Morales precisa de um tratamento intensivo, fora do normal, de madrugadas dedicadas ao joelho, como se nada mais importasse, absolutamente nada pudesse ser maior que a força na perna da esperança uruguaia rumo ao tri. O que nos resta? Sai Dagoberto Fontes, entra Victor Espárrago. Ah, Nacional, vamo, Victor.
Walter perde um pouco a atenção ao jogo. O joelho de Morales. Treze minutos de prorrogação e vamos de Espárrago e Gómez, mas ¿Gómez? Saca uma caneta do bolso da camisa e abre o guardanapo branco. Rabisca uma circunferência e sai puxando as linhas daquilo que lembra desde as primeiras aulas, sua maior paixão: ligamento cruzado anterior, côndilo lateral do fêmur, tendão do poplíteo, ligamento colateral fibular, menisco lateral. Suspira com um ataque soviético mas não tira a tinta do papel, contorna todo o joelho improvisado, alcança o ligamento cruzado posterior lá do outro lado, é fim do primeiro tempo, queria estar na Cidade do México.
Ninguém merece uma prorrogação de um jogo em junho, ao norte, começando ao meio-dia. Walter ama Cubilla, mas tem dúvidas se ele vai dar conta de mais quinze minutos. Só nos resta Luis, alguém concorda. E faltando três minutos para o sofrimento virar disputa por pênaltis, é ele, Cubilla, quem causa um grande prejuízo ao pequeno refeitório estudantil da Universidade de Montevidéu – copos, cadeiras, pratos de sobremesa. Sim, o gol é de Cubilla, ainda que as fichas técnicas não apontem para o seu nome. Num lance que parecia controlado pela defesa europeia, El Negro se enfia no meio das pernas do zagueiro Valentin Afonin para trazer para o campo uma bola que tinha como destino certo o passar do tempo na linha de fundo. Em Moscou, é unanimidade: a pelota saiu. E o resto é história. Cubilla se multiplica e contorna o beque para cruzar na cabeça de Espárrago, presenteado por levar a celeste às semifinais. Gol do Nacional, gol do Uruguai. Adiós, socialistas.
De domingo a quarta, Walter só pensa no maldito joelho de Morales. Bendito, melhor dizendo. Queria vender tudo e subir ao México, precisava ajudar, mas tudo o quê? Não foi a aula na manhã seguinte. Estudava o time do Brasil, cruzava os dados, analisava os pesos e medidas, previa os encontros, de Gérson e Maneiro, de Castillo e Clodoaldo. Sabia que os brasileiros eram melhores, mas sabia sobretudo que o joelho de Morales teria pela frente o capitão Carlos Alberto. Uma máquina na posição, 26 anos a serem completados dali uns dias, vigor físico impressionante. E, de fato, não deu. Cubillas ainda abriu o placar e o Uruguai se classificava à final da Copa do Mundo por quase meia-hora. Mas Tostão achou Clodoaldo, e depois vieram os gols de Jairzinho e Rivelino. Sobre Pelé, Walter tinha certeza que lembrariam da dança diante de Mazurkiewicz, quase nada da cotovelada em Fontes. Walter sabia muito sobre tudo aquilo: era um jogo sujo também, de cotovelos e mordidas. De dores nos joelhos, de dores na alma. De amor e sofrimento, de delícia e solidão. De escolhas. Para quem veio da terra de Obdulio e Galeano, não era tão difícil saber que o futebol valia mais que a vida. Do México, em 1970, teve a certeza de que iria também dedicar a sua própria.
*Walter Ferreira se tornou fisioterapeuta da seleção uruguaia em 1980. Em 2014, interrompeu um tratamento de câncer para vir à Copa do Mundo. Conseguiu recuperar Luis Suárez, principal jogador uruguaio e ausente na estreia, para depois de um problema no joelho marcar os dois gols da vitória sobre a Inglaterra em Itaquera, São Paulo. Walter Ferreira morreu em 2016, aos 65 anos.
*Paulo Junior é jornalista, cineasta, escritor e o responsável por alguns podcasts da casa.
Douglas disse:
Que texto fantástico!
JOAO VICENTE NASCIMENTO LINS disse:
Texto muito belo
Lucas Franco disse:
Belíssimo texto! Lembro do jogo entre Uruguai e Inglaterra e da homanagem que Luisito Suárez fez. Mas não conhecia a importância deste personagem chamado Walter Ferreira. De aficcionados torcedor em 1970 a toda uma vida de serviço ao futebol do seu país! Obrigado!