Belchior comparece ao seu compromisso inadiável

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*Por João Carlos Cunha

O que imaginamos de nossas vidas? A esta pergunta Belchior tentou o tempo todo responder. Através de suas belas canções e arranjos magníficos, os quais não tem sentido na boca de mais ninguém. Não existem intérpretes para as músicas de Belchior, justamente porque não cabe interpretação, mas imaginação.

Hão de concordar que o ponto alto de Belchior é a obra Alucinação. Não é apenas um disco, com lado A e lado B. Não há ali apenas mera formalidade sequencial de canções. O que reside naquela cerca de meia hora é um tratado sobre a condição humana. É uma espécie de contra-contra cultura.

Belchior assina de cabo a rabo algo que nem ele mesmo imaginaria tantos anos depois. Naquelas músicas o cearense faz questão de cometer um “musicídio” desde o começo. Não tem canção correta, branca, nem muito limpa, nem muito leve… e que não fira. É preciso ferir, para Belchior a arte só serve se machucar alguém. E ele faz questão de mensurar toda a arte a ferir, indicando quem deve ser visibilizado; esmagando conceitos bobos de uma época que se travestia de forma pacífica para o combate. Porém, qual combate deve ser pacífico? Se há violência contra mim, que eu exerça violência contrária e proporcional, na medida das armas que disponho.

A música de Belchior, a sua própria Alucinação (em maiúsculo pois ela é categoria de pensamento do cantor), é um chamado a viver a experiência com as coisas reais. É um grito contra a gabinetização com as quais a gente inteligente tenta resolver os problemas reais, de pessoas reais: de pretos, pobre, estudantes, mulheres sozinhas…

Falta viver e se viver. Viver a si próprio. De retirante a mágico, Belchior nos demonstra que o sol não é tão bonito para quem vem do Norte e vive na rua, passa fome. Não há como lutar por dias melhores se Sampa é violenta e o Rio engana. É violenta contra nós e nos engana, que caímos pela lei de Newton, em grandes cidades, como se as nossas capitais fossem meros acessórios territoriais.

Demonstrando como nos sustentamos através de enlatados oriundos do sudeste brasileiro, Belchior faz questão de dizer que não adianta cantar como se quer, se tudo pode se transformar em produto. Marxista ou não, Belchior não quis alienar-se. E criticou a alienação. Era um sujeito perigoso esse rapaz latino americano.

Tão perigoso que mesmo depois de tantos anos sem dar notícias, precisava reaparecer. Ele não queria, foram atrás dele. Nossa sociedade necessita de sujeitos perigosos, classes marginais; sem elas como cultivaremos o medo que sustenta todo um sistema punitivo repressivo e violento?

Ele já havia alertado que viver é que é o grande perigo

Belchior sumiu, diziam os meios de comunicação, mal sabendo eles que, na verdade, ele está aí o tempo todo. Em todo lugar e em lugar nenhum.

Agora de uma vez por todas.

Belchior lutou para não ser. Ele não queria ser. Ele não poderia ser como nossos pais e vestir velhas roupas coloridas.

Já sabemos seu paradeiro, Belchior está um pouquinho em cada um de nós, que sofre abertamente para tentar mostrar que existe muito mais além da simples compilação de sotaques, ritmos e paisagens.

Vai Belchior, você tinha compromisso a noite e não poderia faltar por causa de nós.

 

*João Carlos Cunha é maranhense, mestre em direito e faz parte do conselho editorial do Baião de Dois, da Central3.

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