*Por Paulo Júnior
Eu queria fazer um filme-ritual, onde cinema e futebol se amalgamassem.
A definição de Erik Rocha, sobre seu espetacular filme Campo de Jogo, dá o tom de seu maior acerto: enquanto falamos e ouvimos e repetimos que o cinema tem dificuldade em retratar o futebol, a presença da câmera na final de um torneio entre comunidades num campo de terra próximo ao Maracanã não conta nem retrata ou narra o jogo – ela encontra o jogo para formar outro lugar de invenção. Amálgama.
Se a grande diferença entre ficção e documentário é a relação ética entre o realizador e seus personagens, Rocha se permite apenas um parágrafo de didatismo. O longa começa situando o espectador sobre o que virá pela frente, a decisão de um jogo entre Geração e Juventude. O campo de jogo, aqui em minúsculas, surge como protagonista, os times sobem à terra batida e a partir daí tudo é vertigem.
Porque se Campo de Jogo já começa com a premissa de investigar as origens do futebol brasileiro em tempos de padrão Fifa e superexposição do esporte pasteurizado e global, outra fuga, essa da imagem, se dá diante da imposição de uma estética pela televisão. Se é possível assistir a segunda divisão do Campeonato Chinês com tomadas aéreas em HD, por onde se conta a história em Campo de Jogo, entre times que a gente não torce e não temos ideia de como chegaram ali? Pelo chão. Tal como renega a arena cinza construída sobre o Maior do Mundo ofuscado ali ao lado, o filme nos lembra do que vale o cinema se não permitir a inauguração de um novo olhar, que quando bem executado gruda na memória para sempre.
E o gol? Rocha resvalou, em sua entrevista a esta Central 3 em julho de 2015, que em Campo de Jogo o gol não é o mais importante, mas sim o movimento, a dança, o campo de batalha. O diretor é muito bem resolvido com sua proposta, e ele também usou o termo ‘epidérmico’, aquilo que se refere a pele, o suor, o corpo. Lindo. Viaja numa brisa metafísica e metafórica e leva 22 caras correndo atrás de uma bola para um lugar quase inalcançável aos olhos, feito um exercício de Nelson Rodrigues ou outros contadores de histórias do nosso futebol; mas volta, ao chão, à terra, ao vento de areia que corta os olhos do goleiro, elegantemente combinando a vertigem com a realidade. Como Graciliano Ramos, em Vidas Secas: a caatinga estendia-se sobre um vermelho indeciso, salpicado de manchas brancas, que eram ossadas… e quando você pensa que a narrativa vai flutuar num vazio, como se fosse possível uma folha escapar da árvore e parar num vácuo, voltam aquelas pessoas, Fabiano, Sinha Vitória, os meninos, a cachorra Baleia, volta aquela família caminhando no chão de terra batida. Isso é Campo de Jogo.
E o gol?, retomo. O gol não é um mero detalhe, parafraseando Carlos Alberto Parreira ao contrário. Fosse, o chute decisivo da partida retratada no filme não seria repetido quatro vezes, por quatro ângulos, feito os melhores momentos de jogos na internet (aliás, por que melhores momentos na internet têm replay se você mesmo pode voltar o lance?). E aí está a grande peça pregada por Rocha. É futebol ou não é, oras? É dança, mas dança não dá frio na barriga na hora do pênalti. É performance, mas na performance ninguém chora quando perde. É futebol e muito. E o gol é importante demais. Cada vez que alguém fala que futebol é mais que um jogo, lembremos o oposto. É assim, tanto, exatamente por ser SÓ um jogo. Não é experimento social, apaixona porque ganham e perdem.
No fim das contas, Campo de Jogo é uma saudação a um estar no mundo brasileiríssimo. Aquele retângulo – torto, irregular, comprido demais ou de menos, com gramas rebeldes nos cantos – enquanto melhor lugar para se estar em toda a comunidade, bairro, cidade. E enquanto protagonista de uma formação da identidade brasileira irreversível, por mais que os analistas das repetidas mesas redondas da TV – como estão distantes da várzea, nossa – insistam em problematizar a iminente reverberação de Garrincha, Pelé e tantos outros.
Campo de Jogo nos devolve aos primeiros sonhos, que parecem sair de antes do nada, ancestrais tal como crianças chutando bolas, resistência num tempo contemporâneo em que, mais do que nunca, o campo de jogo, de novo em minúscula, anda claustrofóbico, disciplinando até as convicções mais profundas.
(Reflexos do debate mediado por Lu Castro e na companhia do jornalista Diego Viñas em 4 de maio de 2017, no Teatro Anchieta, em São Paulo, após a exibição de Campo de Jogo pela mostra De Encher os Olhos, com programação gratuita, às terças e quintas do mês de maio, e um filme começando sempre às 19h.)
*Paulo Júnior é jornalista, cineasta e comanda alguns podcasts dentro da Central3.