*Por Renan Martins Frade
“Joe Simon e Jack Kirby devem estar se revirando no túmulo”. Tenho certeza que muita gente pensou e/ou leu isso durante os últimos dias. O motivo? A Marvel Comics revelou em Secret Empire #0 que Steve Rogers, o Capitão América, SEMPRE foi um agente da HYDRA infiltrado. Essa é a real história do personagem, e não que ele defendeu os Aliados e combateu os nazistas. Aquela história de Cubo Cósmico e mudança da realidade, contada desde o ano passado em Captain America: Steve Rogers #1, não era bem assim. Na verdade, apenas está claro agora aquilo que realmente aconteceu.
A atual fase do Bandeiroso, escrita por Nick Spencer, acontece por causa da Kobik, a versão humana (AND criança) do Cubo Cósmico. Manipulada pelo Caveira Vermelha, ela fez de Steve um agente da HYDRA – reescrevendo a história do personagem dentro do Universo Marvel. O Super Soldado, nessa realidade reescrita, teve a vida manipulada pela organização secreta desde a infância, se infiltrando aos Aliados e se transformando no Capitão América apenas para ajudar os integrantes da HYDRA.
Só que Secret Empire #0 abre com uma “verdade”: descobrimos que, em 1945, eram os Nazistas e a HYDRA que estavam pra vencer a Segunda Guerra Mundial. Os Aliados, então, usam o Cubo Cósmico em uma desesperada cartada final, alterando a realidade – e colocando os EUA, Reino Unido, França, União Soviética e os outros países que os apoiaram como os vitoriosos. Mais do que isso: eles “deturpam” o posicionamento de Steve Rogers, colocando-o como realmente um soldado dos EUA no conflito, sem ser um agente infiltrado.
A HYDRA percebeu que isso estava para acontecer e agiram para proteger as verdadeiras memórias de Rogers. Pelo plano dos vilões, eventualmente o Cubo Cósmico se tornaria consciente e, ao invés de alterar a realidade mais uma vez, ela finalmente revelaria a verdade: o Capitão América era um traidor.
É esse o começo que tem chocado muitos leitores. Mas isso acontece, na realidade, em apenas cinco páginas. A história, depois, continua.
Voltamos ao presente, após os acontecimentos de Civil War II. Steve Rogers é o Diretor da SHIELD e, então, três grandes ataques acontecem. O primeiro é de uma tropa Chitauri, que está prestes a invadir a Terra e o campo de força que protege o planeta, instaurado pela Capitã Marvel e Maria Hill há pouco tempo, é destruído por um ataque suicida da HYDRA. Assim, Carol Danvers vai com os heróis mais poderosos da Terra ao espaço, para defender a nossa bolinha azul, enquanto Tony Stark (sim, ele tá vivo) e Riri Williams tentam religar o tal escudo.
A outra treta é em Nova York. Um grupo de vilões que estava preso em Pleasent Hill, uma prisão criada pela Maria Hill há algum tempo, começa a atacar a cidade. Dessa forma, basicamente todos os outros heróis que não estão no espaço vão pra lá defender a cidade. E aí, no meio do caos, o Nitro (sim, aquele da primeira Guerra Civil) causa uma enorme explosão bem em Midtown.
A terceira é em Sokovia. A HYDRA tomou o controle do país, tendo acesso a sete bombas nucleares da época da Guerra Fria, agora apontadas para alvos na Europa e prontas para serem lançadas caso os outros países não aceitem o novo regime. Para isso, a SHIELD então envia parte de suas tropas.
Um caos generalizado. É então que o Secretário de Defesa dos EUA liga para o Capitão Rogers. Com o presidente levado a um lugar seguro, seguindo a lei recentemente aprovada, o Diretor da SHIELD passa a ser o comandante direto do Exército e de todos os órgãos e agências federais. Steve Rogers é, agora, líder do poder executivo e das forças armadas.
Era tudo o que o Capitão América queria.
É então que, milagrosamente, o escudo que protege a Terra é religado. Riri e Tony percebem que o problema nunca foi de hardware, como achavam, mas de software – e que quem religou tudo mantém o controle. Assim, não só os Chitauri estão do lado de fora do planeta, mas TAMBÉM os heróis que estavam defendendo a Terra.
Enquanto isso, a HYDRA ataca da SHIELD. Os agentes sofrem lavagem cerebral, enquanto Steve Rogers revela que ele é o líder da revolução. Já em Nova York, o vilão Blecaute manipula a dimensão negra e joga Manhattan lá. Os heróis ficam isolados.
Homem de Ferro e a Ironheart percebem toda a treta que está rolando. FOI GOLPE e, agora, eles convocam todos os heróis que sobraram pra ir até Washington impedir que a Casa Branca seja tomada pela HYDRA.
É assim que acaba uma das edições 0 mais bombásticas de todas as grandes sagas da Marvel.
Axel Alonso, editor-chefe da Casa das Ideias, já disse antes que os quadrinhos são uma janela para a realidade. Spencer levou isso a um outro grau, transformando Secret Empire em uma GRANDE alegoria não só do mundo de hoje, mas do papel dos Estados Unidos no mundo.
Vamos pensar um pouco. Steve Rogers sempre representou aquele lado idealizado da América, da luta pela liberdade. Nas mãos de alguns roteiristas, ele foi coxinha. Nas mãos de outros, lutou contra o próprio governo. Mas, ainda assim, sempre existiu um QUÊ de romantismo em relação ao personagem, da luta dele pela liberdade.
Mas o mundo real, o nosso aqui, passou longe disso. Nenhum outro país invadiu ou se envolveu na política de outros como os Estados Unidos e a União Soviética/Rússia. De 1945 até hoje foram diversos os conflitos com um dedo (ou as duas mãos) dos EUA, como a Guerra da Coreia, a Crise do Líbano, a Guerra Civil na República Dominicana, a Guerra do Vietnam, a Guerra do Golfo, a Guerra do Kosovo, a Guerra do Afeganistão, a Guerra do Iraque e até uma nova Guerra do Afeganistão. Isso sem falar os envolvimentos não-oficiais, como no do Golpe de 1964 aqui no Brasil. Tudo para defender os próprios interesses comerciais e militares.
A liberdade, quase sempre, foi uma desculpa.
Taí um comportamento que, vamos combinar, parece mais com o da HYDRA do que com o da SHIELD dos quadrinhos – por mais que essa segunda organização também não seja nenhuma santa.
No nosso mundinho, tudo sempre aconteceu com um verniz de defesa da liberdade. O americanos e o resto do mundo (ao menos de forma geral) sempre procuraram acreditar nisso. Quando Barack Obama foi eleito, há pouco mais de oito anos, alguns imaginaram que as ações do então presidente poderiam ser positivas para o fim desse ciclo vicioso de guerras – tanto é que deram a ele o Prêmio Nobel da Paz.
A eleição de Donald Trump, no ano passado, foi para o lado oposto. E é aí que a metáfora de Nick Spencer se encaixa. Aproveitando ganchos de que a HYDRA estava infiltrada em várias instituições do Universo Marvel, deixado pelo Rick Remender, ele construiu uma história na qual nos foi revelada a verdadeira face do Capitão América, da mesma forma que as urnas mostraram a verdadeira face da América. Sempre foi alguém preparado para brigar com todo mundo, para erguer muros, apontar dedos e coisas assim.
Todo o resto, que todo mundo leu ou viu, era manipulação da realidade. Simples assim.
“A ideia de que ‘o mundo é um lugar ruim, por isso histórias precisam ser um escapismo’ continua um argumento irresponsável e covarde”, disse Spencer, via twitter, após ser atacado por fãs revoltados pela revelação de Secret Empire #0. “Histórias existem para iluminar o mundo à nossa volta, para nos desafiar, para nos testar. Elas estão aí para nos ajudar a enfrentar nossos medos, e não para fugir deles”.
Spencer também citou outro quadrinista famoso pelas fortes palavras: Alan Moore. “’Se a audiência soubesse o que quer, ela não seria a audiência’. Estas continuam fortes palavras, pelas quais qualquer roteirista deveria viver ou morrer”, disse Spencer.
O principal argumento contra o que está em Secret Empire #0 é que a história mudaria tudo o que foi contado com o Capitão América desde 1940. Por mais que retcons sejam comuns nos gibis, nunca alguém na Marvel tinha ido tão longe ao aliar um dos principais heróis da editora aos seus maiores inimigos. No entanto, é bom lembrar que Secret Empire ainda não acabou – pode ser que o prólogo dessa edição 0 seja apresentado apenas como uma SALVAGUARDA da Kobik, uma manipulação da realidade para contradizer quem descubra o que ela fez. Ou esqueçam tudo isso daqui um ano, como fizeram com, sei lá, o KID TONY STARK (sim, já teve isso).
E, mesmo que seja revelado que tudo isso é o cânone a partir de agora, é bom lembrar que ninguém fez uma lavagem cerebral nos leitores. Tudo que eles leram, todo o prazer que tiveram com o personagem, continua sendo a verdade. Aquilo era a realidade do Universo Marvel e para eles naquele momento. É isso que importa. Ninguém mexeu no que Joe Simon, Jack Kirby, Stan Lee e tantos outros contaram nas últimas décadas. Ninguém rasgou páginas ou queimou revistas em praça pública.
A HYDRA continua sendo nazista.
Confesso que eu já fui esse cara, o do “não, tão acabando com o meu personagem”. Mas, amigo, isso pouco importa. O que é realmente importante é ler uma história empolgante, ser surpreendido, perceber numa página de papel cheia de cores e palavras que tem algo que faz refletir sobre o mundo como um todo. Isso é do caralho. O resto é consequência. O papel, afinal, aceita tudo. O mundo, infelizmente, não.
Neste momento, tem um filho da puta poderoso no cargo mais importante do mundo. Nos gibis. No mundo real. A diferença é que um deles sabe exatamente o que está fazendo.
“Uma última coisa: a coisa mais desrespeitável que eu poderia fazer com os criadores do personagem que eu escrevo seria não contar a melhor história que eu posso fazer”, fechou Spencer. “A segunda coisa mais desrespeitável que eu poderia fazer, se vocês estão imaginando o que é, é fingir que eu falo por aqueles que não estão mais entre nós [Simon e Kirby]”.
*Renan Martins Frade é colaborador do Judão, podcast de cultura pop da Central3.