Por Leandro Iamin
Para posicionar Totti na história do futebol de sua geração, é preciso primeiro fazer um exercício matemático e sem a lupa que aumenta o personagem central. Menos de 1% dos jogadores de futebol são craques. Menos de 1% dos jogadores de futebol são leais aos signos afetivos de família e infância quando a profissão lhes apresenta oferta de trabalho maior. Totti é a exceção dupla, é o encontro de duas minorias absolutas em um só corpo, é a estatística reduzida à sua mais ínfima possibilidade. Ele faz parte dos dois grupos de menos de 1%.
É isso que explica 24 anos de Roma. Se fosse leal como é, mas jogador comum, esquece, a Roma não lhe ofertaria os contratos milionários que ofertou, nem o Real Madrid lhe apareceria, e Totti engoliria a lealdade com um copo de água fria antes de assinar com o Brescia. Pois é disso que tratamos quando festejamos uma exceção. A gente quer fazer o contraponto, exaltá-lo como forma de mostrar a outros craques o que eles abriram mão de ser pelo resto da vida em troca de outros milhões, mas o futebol em si é a força mais cruel do negócio, ele se regula tecnicamente antes de considerar a fidelidade de quem o pratica.
“Do futebol moderno você ganhou sua principal batalha”.
A faixa da torcida da Roma ontem para seu capitão tem um ponto, mas esconde outros atletas que por ventura amaram a Roma tanto quanto Totti mas foram chutados de lá. Quem vai bancar o amor pelo amor? Que o camisa 10 gialorrossi emocionou o mundo do futebol, é fato, e toda narrativa a seu respeito lembrará sua relação com a cidade e o clube que adora e quis estar do primeiro ao último dia de carreira. É o exemplo de ídolo que qualquer torcedor gostaria de ter e um personagem que transcende a compreensão apenas futebolística – Totti é parte da cultura, do folclore, da sociologia e da política da cidade daqui pra frente. Mas seu adeus nos machuca na medida em que também nos culpa por sermos tão devotados aos craques e tão pouco generosos com os leais.
E que não se aponte o dedo aos outros, os craques-mas-loucos. Edmundo era um projeto de ídolo em Florença e tinha condições de se tornar o que Batistuta se tornou naquela cidade. Seu melhor amigo lhe dizia, por telefone, “Edmundo, fique aí, o Rio de Janeiro não vai acabar, você terá a vida inteira para viver aqui”, mas quem convence Edmundo? Ele quis, dois anos antes, estar no Rio de Janeiro mesmo que o preço disso fosse alto demais ao coração, ou seja, atuar pelo Flamengo, clube oposto ao Vasco que ama. Cada Edmundo que vai-e-vém é um Totti que respirou fundo e disse “não”: sujeitos raros, que tiveram a felicidade de passar a carreira com portas e janelas abertas, tiveram direito a todas as escolhas. Cada um com seu temperamento.
Fico com a pensata de Menon, que, quando Renan, volante sãopaulino que atuava pela Portuguesa, foi visto na arquibancada do Morumbi com a camisa tricolor, defendeu a Lusa e o direito que ela tem ao orgulho. O direito, ainda que utópico, que temos de ver surgir um Zézinho Goiano, craque de Seleção, que não quer saber de europa nem de Corinthians, só quer saber de Atlético Goianiense, seu clube de coração, clube de sua família e ponto final. Mais que isso, o direito que clubes médios e pequenos possuem de exigir de parte de seu plantel uma lealdade que a lógica do mercado da bola teima em esvaziar, e a gente colabora concordando que uma proposta do Corinthians é mesmo inegável para um jogador do Atlético Goianiense. Talvez não tenha sempre que ser.
Verón se aposentou na última quinta-feira. Sem pompa nem circunstância, eliminado da Libertadores na cidade de Quilmes, vizinha de La Plata, noite de muito frio e pouco público. Deu um tchauzinho para as numeradas e se mandou. É presidente do Estudiantes, clube que tem em seu pai outro ídolo incontestável. Rodou o mundo, o Verón, a ponto de ser, injustamente, acusado na Argentina de apátrida. Sua despedida contrasta agressivamente com a de Totti, assim como o resto da vida de Totti será muito diferente da de Higuaín, por exemplo, cujo pai atuou no River Plate mas ele, Higuaín, não tem identificação, hoje, com clube algum. Cada ida ao restaurante, pelo resto da vida, será um conforto para o aposentado Totti. Ele apostou na lealdade. E a gente precisa bancá-la mais.
Joao Garcia disse:
“Mas seu adeus nos machuca na medida em que também nos culpa por sermos tão devotados aos craques e tão pouco generosos com os leais.”: vide Wendel, no Palmeiras, e Betão, no Corinthians. Tão torcedores e apaixonados quanto Totti. Da base, amantes dos times. Mas desprezados, chutados. De se pensar.
João Vicente disse:
Nossa, tive a chance de ler o texto só agora (no feriado). A atitude de Totti, Gerard, Marco Reus, e outros, como Verón, Tevez ou Milito (em exemplos menores, mas nem por isso menores em estatura) são louváveis em um mundo onde sabemos que impera o Capital.
Acho que dificilmente veremos exemplos como o de Totti, futuramente não existirão, as torcidas clamam por jogadores como Totti, mas amariam muito mais outros 11 como CR7 em seus times, a lógica do capital entra até nisso, afinal todos queremos ganhar do time adversário, principalmente do maior rival, casar os dois é muito difícil, mas enquanto a lógica do futebol moderno imperar, o que irá imperar é o poder do Capital no sentido da rivalidade e da vaidade.
Principalmente quando vemos uma situação muito mais apátrida de torcedores aqui no Brasil (até entendo quando um time se perde tanto em seus próprios erros como o Palmeiras foi entre 2002-2015), quando os jovens identificam-se muito mais com os esquadrões endinheirados da Europa, do que pela trajetória dos craques da base até o estrelato no time principal, até por que eles verão esse craques justamente nos times que agora torcem.
Todos querem Totti, mas torcerão cada vez mais para os CR7s.