Após uma bem sucedida carreira em festivais brasileiros e internacionais, o longa-metragem “Mulher do Pai” desembarca no circuito comercial trazendo na bagagem importantes prêmios, como o de direção, fotografia e melhor atriz coadjuvante acumulados no Festival do Rio de 2016, além do Prêmio Abraccine na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e de exibições nos festivais de Berlim e Guadalajara. O filme, dirigido por Cristiane Oliveira, é uma coprodução entre Brasil e Uruguai e situa-se em uma pequena cidade próxima a fronteira entre os dois países.
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No pacato lugarejo rural, o tempo passa devagar. A vida se arrasta sem pressa e sem novidades. Neste ritmo contemplativo, bem situado pela ótima fotografia de Heloísa Passos (de “Viajo porque preciso, Volto porque te amo”), os protagonistas Nalu e Ruben dividem o lar com a matriarca da família, envolvidos por uma rotina já estabelecida. Ruben é o homem da casa, mas se mostra apático e fragilizado por conta de sua deficiência visual; já Nalu é uma jovem de 16 anos, pouco à vontade em casa, mais preocupada com a escola e as amigas. Entre eles, a personagem da avó e mãe ocupa o lugar central e de domínio, como que intermediando as relações, conduzindo os dias e sendo responsável por manter o equilíbrio do lar. Sua repentina morte, ainda nos primeiros minutos de filme, precipita um conflito que se arrastará pelo resto da projeção.
Usando o personagem cego como ponto de partida, “Mulher do Pai” tem a visão como questão central. Os dois personagens principais, embora tenham vivido juntos desde sempre, de certa forma estão começando a “se enxergar” novamente, após muito tempo. É um processo de reaproximação e descoberta. O pai é obrigado a ver a garota de um novo jeito. Não apenas por necessitar de seus cuidados, mas pela convivência sem o intermédio da matriarca. Aos poucos, a filha vai se revelando também uma mulher, uma garota descobrindo a própria sexualidade e buscando sua independência. Já Nalu precisa se reaproximar do pai e ajudá-lo nas tarefas básicas do dia-a-dia, ao mesmo tempo em que passará a vê-lo também como um homem, com desejos novamente despertados e necessidades. É aí que surgem os conflitos, quando processos naturais acabam sendo apressados por essas novas circunstâncias.
No centro deste conflito, pode-se dizer que a geografia local tem importância fundamental na narrativa. A proximidade da cidade com a fronteira, sua distância dos grandes centros e sua característica rural faz com que os personagens pareçam estar em um estado de suspensão. É como se nada de novo pudesse acontecer por aqueles lados. A esperança de novidades e de novos está atrelada a cidade grande – Porto Alegre, no caso – ou ao Uruguai – seja Montevidéu ou cidades menores. Dentro dessas possibilidades, é Juan, um uruguaio de passagem pela cidade, que conquistará Nalu e abalará seu mundo adolescente e de hormônios em ebulição; enquanto para Ruben é a aproximação com Rosário – professora e amiga da filha – que forçará sua saída da letargia em que se afundou por auto-piedade e conformismo.
A pequena cidade rural, ancorada em valores masculinos de trabalho braçal, lida com animais e com o campo, não comporta as vontades de uma Nalu que está descobrindo a si mesma e ao mundo. “Mulher do Pai” tem um importante discurso feminino, com mulheres bem resolvidas, que procuram sua independência, seu lugar na sociedade. O olhar sensível, uma equipe criativa composta principalmente pelo sexo feminino e uma protagonista mulher já foram suficientes para que o filme fosse taxado de “feminista” em algumas matérias e críticas na imprensa, mesmo que o tom panfletário não pudesse estar mais distante.
A diretora Cristiane Oliveira adota um tom intimista, uma narrativa sóbria, focada nos personagens. Nos papéis principais, a estreante Maria Galant faz um Nalu segura, enquanto Marat Descartes – uma das novas caras mais “onipresentes”do cinema brasileiro atual – mantém a regularidade de suas boas atuações ao viver o sisudo Ruben. O roteiro é uma mini-trama de poucos acontecimentos. A preocupação maior está no tom, na estética, na ambientação e nos atores, tudo tecnicamente bem resolvido. Os enquadramentos rigorosos, precisos, e a iluminação cuidadosa revelam um Brasil ainda pouco visto nas telas, que foge aos estereótipos que nossa cinematografia costuma exportar para o mundo. Um Brasil de interiores, cidades pequenas, vida calma, pacata; do campo, da fronteira, do sotaque gaúcho e do portunhol. E que venham mais filmes assim, mais coproduções e uma maior integração do nosso cinema ao de nossos vizinhos latinos.
*Murilo Costa é cineasta e membro do podcast Central Cine Brasil.