Como se viu em todos os botecos, reais e virtuais, o assunto desta semana é e continua sendo a inauguração do novo estádio do Corinthians, recheada das mais variadas polêmicas.
Assim, não podemos falar de outra coisa senão a primeira vivência deste colunista na nova casa do alvinegro, mais do que nunca da zona leste, a terceira, e não a primeira, da história do clube. Sem contabilizar os locais onde mais acumulamos alegrias e tristezas…
Uma primeira vez diferente, solitária, sem a mão do pai que me apresentou o Pacaembu em partida ocultada de uma memória ainda inexistente à época.
Para aquele que vive a vida por um viés pretensamente crítico, não está fácil falar do assunto. Assim como não foi exatamente simples lidar com os choques de emoções, diversas e também contraditórias, deste 18 de maio que ficará para a posteridade corintiana. O relato que se segue é difuso, creio que inconclusivo. Tem a intenção de soar jornalístico, mas não deixará de ser fundamentalmente pessoal, emocional e torcedor.
A construção subjetiva
Para entender o atual momento de “modernização” do futebol brasileiro, creio ser válido um paralelo com o que aconteceu no futebol inglês na virada da década de 80 para a de 90, após a tragédia de Hillsborough e a fraude processual que a seguiu. Isso por ter se assentado numa construção ideológica similar.
Atribuíram-se todos os problemas do futebol inglês aos hooligans e assim justificou-se uma transformação total, física, estética, social e econômica. A seguir, vimos que ao lado de grandes reformas dos estádios veio uma mudança do público (que já sofreu inúmeras críticas de técnicos e jogadores de lá). Isso no contexto mundial da globalização e reformas liberalizantes em todos os setores, capitaneadas por Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Agora, mais de 20 anos depois, o governo inglês reconheceu a farsa da investigação da tragédia que abriu as portas para tudo isso.
A bola da vez é o Brasil. E o futebol brasileiro, a meu ver, vive o mesmo processo dos anos 90, das reformas neoliberais e odes diuturnas na mídia em favor da privatização de tudo que fosse público. Como vimos, empresas estratégicas foram privatizadas, os amigos do poder enriqueceram de forma nababesca, as condições de trabalho pioraram e as promessas jamais se cumpriram. A “livre-concorrência” encareceu todos os serviços, cuja qualidade é invariavelmente sofrível e o atendimento ao consumidor, ou cidadão, uma lástima. Mas até hoje nada foi revertido.
Digo isso porque em ambos os casos, nas reformas dos anos 90 e agora na nova concepção esportiva, o discurso que vendeu tal necessidade foi absolutista e intolerante ao contraditório: “é isso ou nada”. Se não for assim, “não teremos condições de manter a qualidade”, “não seremos competitivos”, “ficaremos para trás” etc. e tal. E, gostemos ou não, o grande público compra cegamente a conversa. No caso do Corinthians e sua torcida, não foi diferente.
Como frequentador assíduo dos estádios onde joga o alvinegro há muitos anos, é inegável reconhecer que a ideia de “casa própria” pegou. Mais precisamente, após o clube se afirmar como vencedor em âmbito nacional, acumulando títulos do Brasileiro e da Copa do Brasil. Ficou faltando, como se bombardeou na mídia, o estádio e a Copa Libertadores. E, numa sociedade competitiva e patrimonialista como a nossa, é preciso lembrar da subjetividade que causa no imaginário coletivo a conquista da casa própria.
Portanto, a despeito da visível elitização, não houve a menor resistência ou crítica no seio da torcida à construção do Itaquerão (ou arena…), mesmo que a preços pra lá de questionáveis, com procedimentos não menos polêmicos, como as remoções dos mais pobres, especulação desbragada que invade o bairro e super-exploração do trabalhador (e as três mortes que também ficarão na história). Ficou fácil passarem o trator.
É luta de classes, meu filho
Para resumir como vivo e sinto o atual momento, relembro a afirmação do nosso companheiro Leandro Iamin (que em breve frequentará a nova casa palestrina), quando da eclosão das grandes manifestações de junho, durante a Copa das Confederações. “Eles levaram a luta de classes para dentro dos estádios e não querem uma reação?”
Tal como nos anos 90, os donos de tudo querem fazer suas reformas na marra. “O Flamengo vai se sustentar com ingresso para pobres?”, indagou um dirigente rubro-negro, na semana passada. O Atlético Mineiro não fica atrás na majoração de ingressos e na maioria das vezes não lota o pequeno Independência. Agora, vimos Sanchez dizer que “com ingresso de 35 reais não dá pra pagar o estádio”. Qualquer semelhança com o assalto privatista, não parece mera coincidência. Aliás, hoje mesmo, enquanto traçava essas linhas, li notícia de que cobrar por cursos e estacionamentos seria uma solução pra suposta crise financeira da USP. Eles querem tudo, amigos. O futebol, maior patrimônio cultural do país, não poderia escapar.
O momento, de modo geral, é de defensiva. Por ora, “eles” estão vencendo a tal batalha de classes. Ontem, vi um Corinthians de torcida branca e “limpinha”, deslumbrada com o chão de mármore, o que nem de longe constituiu a mística e subjetividade do clube. Ou que segurou a barra nos anos de times e campanhas medíocres, sem título, mas com aquele sentimento de que “ser Corinthians” era o mais importante e saboroso de tudo, ganhando ou perdendo, com chuva de granizo ou sol.
Hoje, a diretoria e suas campanhas de marketing promovem tais mantras à exaustão, inclusive para torcedores que jamais se misturaram com povo, mas que adoram falar de “festa na favela”, “sou maloqueiro e sofredor”. É preciso admitir que o Pacaembu já foi assim nos últimos 5 ou 6 anos…
“Tá muito modinha”, resmungou um torcedor de idade similar à minha, acompanhado de um senhor na casa dos 50 anos, à saída do jogo. O que lembrou meu pai, ausente neste domingo, mas sempre presente nas grandes, ou pífias, jornadas. “Tem gente mais preocupada em chamar o goleiro de bicha do que cantar pro time”, complementou. No que concordei imediatamente.
Por outro lado, se querem uma prova do tamanho da farsa desse discurso higienizador, e domesticador, do futebol e sua cultura, já a tivemos: ainda que o estádio tenha confortáveis cadeiras, absolutamente ninguém, em nenhum setor do estádio, do mais barato ao mais caro, assistiu ao jogo sentado. Mas ainda vemos a mídia cagando pela boca o “indiscutível fato” de que precisamos de assentos numerados. Ninguém jamais os pediu, simplesmente.
Resistência
Sobre tudo isso, meu grande temor é o de que as torcidas deixem-se cooptar pelo processo. A Gaviões, que ontem chiou sobre o preço dos ingressos, é a mesma que viu essa elitização do clube de camarote, satisfeita com o quinhão que garantiu para si num setor reservado a ela, a preços um pouco menores. O mesmo se deu na Arena do Grêmio, com sua Geral que se contentou com a migalha de uma bancada atrás do gol, quando o velho Olímpico oferecia todo o anel inferior como “geral”.
Se assim for, talvez o último espaço para a rebeldia nos estádios seja perdido, pois, queira-se ou não, são as organizadas quem têm capacidade de mobilização e contestação dentro dos palcos esportivos e da política dos clubes. Os torcedores, no Brasil, ainda passam longe de se verem como classe, de modo que ainda não possuem nenhuma organização “suprapartidária” que lute pelos seus direitos e interesses.
Apesar de tudo, me vejo longe de entregar os pontos. Acredito que o impacto inicial das arenas será forte e seu público seleto deve ter fôlego para bancar a brincadeira por algum tempo, porém, não muito. Mesmo o torcedor menos abastado, fará força para ir ao novo estádio nesse primeiro momento. Mas quando os jogos ali se tornarem rotina, com ingressos caros, não haverá a fidelidade deste público “qualificado”, que, além de tudo, dispõe de outras possibilidades de divertimento. Por mais que se declarem apaixonados, tais torcedores não guardam a mesma relação de apego e necessidade afetiva daquele mais empobrecido, que tem no clube de futebol um dos poucos motivos de alegria, escape ou redenção na vida dura de cada dia. Ao menos é minha percepção.
Não me venham com essa de “é melhor pegar o dinheiro e fazer um churrasco”. À merda. O futebol e o time que aprendi a amar sempre foram vividos de perto, de dentro, com fúria e fervor que só a arquibancada nos ensinou a expressar. Largar tudo é o fim da linha, a derrota final. Prefiro disputar o espaço, aguardar a reação, até que tomemos de volta, nem que seja na unha, o que construímos historicamente. Claro que não vou gastar o que não tiver. Talvez diminua minha frequência nos jogos. Mas abandonar é aceitar que o Corinthians caminhará impunemente para outra direção na vida, onde “time do povo” será apenas “hashtag”, slogan vendido e ostentado por quem mandou a massa ficar fazendo churrasquinho na laje ou assistindo no boteco. Pra mim, e para milhões, futebol jamais fará sentido assim. O novo jogo apenas começou. Lutemos pelo que acreditamos. “Com muito amor, até o fim”…