Uma característica curiosa de nossa sociedade é a necessidade de reconhecimento oficial para que consideremos que algo existe. Talvez seja consequência dos pedidos de RG, CNH, publicações em diário oficial, atestado disso ou daquilo e comprovantes de não sei mais o que que enfrentamos todo dia, mas chegamos a uma situação na qual muita gente age como se eventos que (ainda) não tem um carimbo oficial simplesmente (ainda) não tivessem acontecido (e por consequência aqueles que tem passam a ser incontestáveis).
Um exemplo disso foi o reconhecimento por parte da CBF de que os campeonatos Roberto Gomes Pedrosa e Taça Brasil “são” Campeonatos Brasileiros. Torcedores dos times campeões comemoraram e a grande mídia se pôs a mostrar quem eram os novos maiores campeões brasileiros de todos os tempos. É verdade que alguns jornalistas com senso crítico discutiram se a decisão do “órgão máximo do futebol brasileiro” tinha sido acertada ou não olhando para a representatividade do futebol nacional, número de jogos, forma de disputa etc de cada campeonato, enquanto outros mais preocupados com a verdade do que com a audiência mostravam que a decisão, pra variar, tinha sido política e não esportiva (visando agradar e ganhar apoio de alguns times num momento delicado para a CBF). No entanto, nem essas abordagens fazem sentido para mim.
Não é o selo oficial que garante a existência de alguma coisa, mas também não acredito que uma série de critérios objetivos consiga definir se algo foi ou não foi. A razão disso está no que eu vejo como essência do futebol e no que eu acredito que conte: a emoção do torcedor. A emoção do torcedor é o que conta porque ela de fato, acontece, ou seja, independente de qualquer coisa ela existe (e aqui o leitor pode apontar um dogma meu, porque é mesmo). Ela não precisa ser definida por ninguém nem ter selo algum e, no final das contas, é o que fica de tudo aquilo que se passa no campo, mesmo que a partida seja anulada depois. Todo o resto são construções humanas, são nomes que damos por necessidade de definir aquilo que se vê, mas que não mudam o que foi experenciado.
Assim, se um torcedor viveu o Robertão como o campeonato mais importante do ano, pra ele é um Campeonato Brasileiro, se não, não. Se no momento do apito final ele sentiu o tesão de ser o melhor time do país pouco importa o que a confederação diga, e se ele não sentiu, pra que serve o reconhecimento da CBF? O momento da canetada do Ricardo Teixeira não tem como mudar nada: ou no dia seguinte ao título (em campo) ele abriu o maior sorriso de sua vida para cada um que lhe deu “oi” ou não. O mesmo vale para um título que seja cancelado, um campeonato que não exista mais ou que já não tenha a importância de antes: um papel oficial não apaga aquilo que o torcedor viveu e sentiu (se a CONMEBOL deixasse de existir e tivéssemos uma “Liga dos Campeões da América” ao invés da Libertadores tudo o que os torcedores sentiram durante seus jogos não despareceria). Enfim, a emoção do torcedor existe e é inacessível aos cartolas e órgãos oficiais.
A mesma coisa vale para o Mundial de 2000, do Corinthians. Eu, como são-paulino, sempre neguei tal título por razões clubísticas, mas também porque me lembrava de como os corintianos que eu conhecia tinham vivido aquele campeonato na época. Imagino que os próprios torcedores do time do Parque São Jorge entendam esse ponto depois da experiência de 2012*. Outra questão interessante é o Campeonato Paulista, que mantém o mesmo nome, os mesmos participantes e as mesmas chancelas desde sempre, mas que hoje é incapaz de gerar nos torcedores aquilo que fazia emergir antes. Não temos como dizer que a edição 2013 não foi um Campeonato Paulista, mas que as de 1983 ou 1993 “valeram” mais, valeram.
Adotar uma posição tão subjetiva tem suas desvantagens: se a levarmos ao limite, cada edição de um campeonato é uma coisa, ou até mesmo cada campeonato para cada indivíduo (torcedor) é uma coisa diferente, dependendo de como ele o viveu. Rankings viram quase que curiosidades (e eu sinto que, no fundo, eles também tem seu significado¹), discussões baseadas em dados serão sempre relativizadas demais e, paradoxalmente, os critérios objetivos que nos fazem valorizar tanto alguns campeonatos (“somos os melhores do mundo!”) e portanto experienciar emoções únicas passam a não fazer mais tanto sentido, já que ser o melhor do bairro talvez consiga envolver tanto um torcedor quanto ganhar um jogo no Japão (mesmo que jogado em Dubai ou no Marrocos)**. Mas, num mundo com tal fixação pelo reconhecimento oficial, no qual torcedores parecem se importar mais em estar em 1o. num ranking qualquer do que a assistir a partida de seu time, e com órgãos oficiais tão podres, acho importante levantar a bandeira de que estamos olhando pro lado errado.
¹até o anarquista James C. Scott em “Two Cheers for Anarchism”, ao explicar a relação entre a ordem oficial e a espontânea reconhece a importância da oficial em certos aspectos (“Two Cheers for Anarchism”, capítulo 2)
* as razões de uma pessoa defender tal ponto deveriam contar bem menos do que os argumentos desta pessoa, ao contrário do que acontece hoje em dia, mas para evitar que falem que, por ser sãopaulino, eu inventei toda essa argumentação só pra “tirar” o título mundial do Corinthians, afirmo que o “verdadeiro” campeão brasileiro de 1987 foi o Flamengo (o que teria consequências ruins para o meu time no caso da Taça das Bolinhas, se é que alguém verdadeiramente liga pra ela)
** sob a ótica da emoção até a vitória perde seu status de superioridade inata. Ela é mais gostosa que a derrota, mas não “melhor”