Terminou. Com a mesma discrição e sutileza com que se comportava dentro e fora de campo. Com a simplicidade de quem nunca se entendeu algo excepcional no mundo, exceto pelo que era capaz de fazer nos gramados. Foi numa simples entrevista a uma rádio que Juan Roman Riquelme anunciou o fim de sua carreira de camisa 10.
Sim, mais do que cracaço, um dos maiores que os vivos já viram, era uma camisa 10, maestro, enganche como se diz por lá, de profissão e fé. Sua partida deixa uma lacuna que o atual futebol não promete preencher.
A discussão é longa e não interessa a este texto-homenagem. Obviamente, o jogo sofre alterações a cada determinado período e hoje em dia estão em alta os jogadores “todo-campistas”, ainda mais num país que desaprendeu o que produzia de melhor. Mas continua parecendo saudável aquele jogador capaz de armar o time mais próximo do gol, inventar passes “quebra-colunas” e, pra completar, com faro de gol.
Dá pra dizer, tranquilamente, que Riquelme teve a carreira pela qual todo torcedor fanático daria tudo para vivê-la com a camisa de seu time.
Pra começo de conversa, estreou num superclasico contra o River Plate, no qual, simplesmente, substituiu Diego Maradona no intervalo, num perfeito ritual de passagem.
Logo depois, o encontro certeiro, com um treinador com fisionomia de bruxo, ao lado do qual assombrou a América por um bom tempo.
Após anos de “cabaré”, como ficou conhecida uma fase de vacas magras e desmandos mil do Boca Juniors, 1998 marcou o início da trajetória de Roman e Carlos Bianchi com a camisa xeneize, empilhando títulos nacionais e continentais, naqueles que foram os anos mais vitoriosos do club de la ribera.
Parceria tão sintonizada que, noutra atitude que só os verdadeiros ídolos tomam, estabeleceu um tratado com o mestre: quando fosse poupado aos domingos para jogos copeiros, estaria na várzea de Don Torcuato, à vera, pois, se ele tinha o privilégio de subir as escadarias subterrâneas da Bombonera, seus amigos continuavam sendo mortais que ralavam nos “potreros” por “puro sentimiento”.
“Tudo bem, desde que você não apareça segunda-feira quebrado no meio”, firmou seu comandante.
Respaldado por um paredaço defensivo e um grupo de jogadores mais do que casca grossa, Roman fez duas Libertadores absurdas em 2000 e 2001. Graças aos épicos cruzamentos com o Palmeiras nesses anos, o público brasileiro logo tomou nota de toda a sua genialidade e, tal como em relação aos próprios torcedores do River, seu talento transpôs quaisquer barreiras de rivalidade e chauvinismo.
Além disso, comandou um dos últimos times sul-americanos a bater de frente, pra valer e sem nenhum complexo de inferioridade, com os campeões europeus. Menos lembradas por aqui, suas partidas contra Real Madrid e Bayern de Munique são duas aulas de futebol. Absolutamente tudo de um camisa 10 em campo, no momento em que sua esquadra mais necessitava, como exigem as grandes biografias.
Assim como muitos de nós afirmamos categoricamente que Edmundo foi o melhor jogador do planeta em 1997, este colunista concede o mesmo título ao “topogigio” de 2001.
Topogigio porque Roman leva consigo outra característica que escasseia. A do jogador que pensa por conta própria. Que não troca o time do coração por qualquer coisa de uma cidade ignota por recomendação do empresário. Que responde às críticas do presidente (então, Mauricio Macri) comemorando um gol com gestos de “quero ouvir”, de frente à tribuna presidencial.
Tal compreensão de sua realidade, e vontade própria, chegou a ponto de sequer cogitar atuar em alguma equipe sem a garantia de que pudesse manter seu estilo. Graças a isso, trocou o Barcelona, onde fez uma temporada de estreia razoável, numa época em que os catalães não andavam muito na crista, pelo modesto Villarreal.
Uma pena para quem gostaria de tê-lo visto ao lado de Ronaldinho Gaúcho, ambos no auge. Sorte do Villarreal, que viveu a melhor fase de sua história. Quase foi parar na final europeia contra o próprio Barça, mas como os grandes astros da vida precisam de alguma dose de revés, um pênalti defendido por Jens Lehmann na semifinal impediu que o pequeno submarino amarelo fosse dono de todos os mares europeus.
Logo depois, satisfeito por meia década no velho e estranho continente, inclusive com a última camisa de Zidane na mala, tratou de articular, ele mesmo, seu retorno ao Boca Juniors, o que se concretizou na virada para 2007, numa cara operação financeira, facilitada por sua abdicação a um semestre de salários.
Como tudo vale a pena quando a alma não é pequena, a recompensa veio logo a seguir, em mais uma Liberadores exuberante. Claudicante na primeira fase, o Boca carimbou sua vaga num 7-0 sobre o Bolívar e a partir do mata-mata tivemos uma cátedra atrás da outra, culminando em duas galas contra o Grêmio e o hexacampeonato de la Copa.
Ainda emprestado, voltou ao Villarreal, de modo que não pode duelar com Kaká no Japão. Mas não demorou muito para que voltasse ao time do coração. Para ficar de vez. Ou quase.
Passou mais 6 anos regendo o Boca, em ritmo e frequência cada vez mais dosados, mas não menos encantadores.
Ciente de seu tamanho, passou deliberadamente a se comportar como dono do time. Treinava e jogava quando queria, sem demasiadas objeções de seus comandantes. Convenhamos, outro sonho de qualquer um de nós, a partir do momento em que o personagem já se sabe entre os deuses.
Quando em campo, mostrava valer a pena e ter razão. Mesmo com o passar dos anos, manteve sua característica que mais parecia um feitiço: a capacidade de transmitir a sensação de que tudo ali era controlado por ele, como se pairasse acima do estádio e decidisse os movimentos e escolhas de todos que o cercavam. Rodando a bola, tocando e logo a recebendo de volta, escolhendo quem sairia na cara do gol e com tacadas de sinuca na hora em que o desfecho pedia sua assinatura.
Sua presença em campo diminuiu mais e mais, embora ainda tenha encontrado tempo de ganhar mais algumas taças (entre elas um nacional invicto) e resvalar numa tríplice coroa em 2012, impedida pelo científico Corinthians de Tite.
Ainda assim, foi capaz de achar um pombo sem asa até hoje inexplicado na revanche de 2013, o que, inconformismo à parte, me deu o regalo de ter um gol de sua lavra testemunhado de perto.
Para oferecer uma pitada final de um lirismo cada vez mais estranho ao futebol, ou a tudo na vida, ainda se lembrou de fazer uma breve paradinha em seu time formador, ajudando o Argentinos Juniors a garantir lugar na primeira divisão em 2015.
Em tempos onde tudo se superlativiza e adjetiva à exaustão, para logo virar lucro, Roman é, hoje, talvez o único caso de atleta a quem podemos apontar e falar: “foi o maior da história desse clube e eu vi”. Quaisquer dúvidas, perguntar pelas veredas da República de La Boca, para representantes de todas as gerações.
Se alguém ainda perde tempo discutindo futebol arte x futebol de resultados, eu vou ali desfrutar do acervo de Roman, graças a uma das autênticas dádivas tecnológicas, e ganhar esse tempo.
Enquanto ainda vivemos o luto de seu fim como atl…, aliás, camisa 10, Roman saboreia a aposentadoria na mesma Don Torcuato que o viu ganhar o mundo, entre mates, asados e os amigos de sempre. O justo fim de quem parece o último dos românticos.