– Qual a sua melhor lembrança da praia?
Chinelos, porque o pai só teve dinheiro pra alugar uma casa do lado de cá da pista. Sunga, calção de futebol e camiseta velha. Livro de bolso do Bukowski, protetor solar, identidade. Identidade? A vó teima que já é grandinho demais pra andar sem documento pela rua. Mas na praia? Sim, moleque, vai esperar ser preso com esse cortante? Lata de Nescau vazia, três e cinquenta prum carretel novo, varetas, papel de seda, rabiola feita na noite anterior. Não era fácil jogar cacheta e fazer rabiola ao mesmo tempo. Cerol. Que baita nome pra uma combinação de pó de vidro e cola esquentados juntos numa lata. Ce-rol. Mas também gosta de cacheta. Ca-che-ta. Cerol. Cacheta. Quando crescer ele vai ser linguista.
– Tem algum método favorito?
Ele dá as cartas: rodam os dois baralhos pela mesa, tio Olavo, mãe, o namorado da Ana, a Ana, vó, uma amiga da vó e ele. Dobra a sacola do Carrefour e segura firme com uma das pontas presas embaixo da minha perna esquerda. Vai cortando as tirinhas – mais finas para o começo, mais grossas para o fim e para consolar a impaciência de mantê-las finas – até que o jogo já deu a volta e chegou até ele novamente. Compra um ás. Descarta um oito. Tio Olavo bate com as dez em cima do oito. O namorado da Ana – chato do caralho – insinua que ele ajudou o tio. Ele ignora e vai juntando as tirinhas de sacola plástica que já caíram sobre a perna direita. Na demora de tio Olavo para comemorar a vitória, contar as pedras, ajeitar o baralho, dar um gole no rum e embaralhar, já abriu as tirinhas e as colocou em volta do pescoço. Faz dois cortes naquelas circunferências de plástico, primeiro na altura do peito; depois, tirando do pescoço e acertando em cheio o ponto que estava na nuca, criando tirinhas do mesmo tamanho. Chega o baralho, a vez dele de cortar. O coringa da rodada é o sete vermelho. Joga as tirinhas no próprio colo e se concentra nas cartas. O jogo está ótimo, e na primeira rodada um valete de paus clareia as possibilidades de vitória: ele está por um dois vermelho. A mãe joga o dois vermelho. Bati! O namorado da Ana bateu antes. Regras são regras, pirralho.
– Dói?
Prefere ter o pipa humilhado nos céus de Itanhaém que perder pro namorado da Ana na cacheta. Mala do cacete. Cochicha no ouvido do tio Olavo. Troca o copo de Coca pelo de rum. Dá um gole corajoso. Precisa ir na pia cuspir. O namorado da Ana percebe, ri e fala com a insuportável da irmã.
– Já matou alguém?
Hoje ainda não. Tio Olavo passa um coringa por debaixo da mesa. Quem dá as cartas, agora, valentão?
– O que é que você esconde aí?
Dá a porra das cartas e não me enche o saco! A sequência vem perfeita, um coringa no colo, outro no meio das cartas, um trio formado por valete, dama e rei de copas e duplas prontas para serem contempladas. Que balé lindo que é a cacheta. A amiga da vó, pra ajudar, lhe descarta o quatro de espadas perfeito, exato, milimétrico. Bati. Tio Olavo lhe dá um tapinha na cabeça. O namorado da Ana, uma risadinha irônica, você roubou, moleque. O mundo é justo. Começa a tocar Belchior na vitrola. Ele vai pro sofá e toma a Coca enquanto vai colocando as tirinhas de saco plástico nos nós da linha dez. Tio Olavo lhe acompanha e assiste com paciência o processo da rabiola. A gentalha se debruça em frente à TV pra A Próxima Vítima. Se dividiram ali, definitiva e eternamente.