Vai parecer insensível no primeiro parágrafo, mas depois a impressão desmancha, prometo: Muricy Ramalho não está preocupado com a sua saúde.
A direção sãopaulina foi decente, e isso não é muito comum, ao alinhar seu discurso com o do treinador desligado do clube: um dos mais identificados e vencedores nomes do São Paulo não ganha o carimbo da demissão, e a posteridade lhe dará a justa – e verdadeira – história do dia em que finalmente pegou o celular e finalmente marcou a cirurgia que adiava.
Mas por qual razão, diabos, ele adiava?
Jogador de futebol de ponta, de nível de topo, sendo bem curto e grosso, torna-se milionário ou ao menos muito rico em troca de sentir dor o resto da vida. Tirando as cifras astronômicas, não é muito diferente com boa parte dos esportes. Estraçalham os tendões, desfiam os ligamentos, envelhecem com inchaços e dores crônicas. Esporte de alta competitividade não é saudável.
Muricy foi jogador de futebol, e dos bons. Não reclama de dor no tornozelo, nas costas, nos famigerados joelhos sem meniscos de sua época. Talvez reclame sutilmente, na nossa frente, de dor na alma. Me passa verdade, o Muricy, quando encarna o personagem endiabrado e possesso à beira do gramado, inquieto em busca de uma perfeição impossível, sobretudo a um sujeito que enxerga o futebol de forma tosca (e isso não é uma crítica). Não é nem de perto o sujeito mais gentil e educado do mundo. Fez inimigos, não poucos, na carreira. Mas nunca deu ao futebol um só reflexo mentiroso.
Isto posto, me parece evidente que sua saúde não era mais importante que vencer o Corinthians e o San Lorenzo. Ele foi capaz, de forma consciente, de empurrar sua máquina vital até a borda, correr o risco de pifar e acabar igual seu mestre, que sempre lhe foi inspiração de conduta e um exemplo de como não terminar a carreira. Racionalmente, ele sabe. A paixão não deixou. Muricy ganhava muito dinheiro em troca de colocar a saúde em risco. E ele não pensaria duas vezes em seguir nesse jogo até perder. O São Paulo perdeu antes. Ele, ainda bem, não teve essa chance.
A história com pés no chão é bem mais feia. Muricy sai do clube que gosta magoado e sentindo-se traído, e despede-se de um presidente inacreditável e de um elenco que ele equivocadamente pediu, desejou, montou, de Pato a Tolói, de Ganso a Dória, de Fabiano a Denilson, um time extremamente caro e que não funciona. Sai Muricy com um trabalho ruim na construção e treinamento da equipe. Mas isso é só futebol, só coisa de campo e vestiário. Muricy é mais que isso para todo sãopaulino.
Tira o boné e vai para o Guarujá, o Muricy, depois da cirurgia marcada, segundo ele, para semana que vem. Já está perto dos 60 anos, a gente nem percebe estas coisas. É um senhor, e senhores às vezes sentem vergonha e não conseguem assumir fraquezas simples e incapacidades adquiridas. Que Muricy não tenha vergonha de falar baixo com o médico ao reconhecer medos, nem de passar seus dias verdadeiramente ocioso. Pelo que costuma receber e diante de tanto amor pelo ofício, acho que ele volta à cena. Enquanto não, que a gente reflita um pouco sobre quantas vezes deixamos fatores físicos e emocionais de lado em nome de uns minutinhos, horinhas, aninhos a mais sentados em uma mesa onde joga-se um jogo ingrato.
O jogo de futebol é o jogo de futebol. Não se joga a vida. “É difícil tomar essa decisão, pois isso aqui é a nossa vida”, declarou nesta manhã Muricy. Pois é. Eu aceito o argumento da saúde, finjo que esqueço os defeitos tricolores e admiro o delicioso erro de quem quase morre em nome da vida.