Por Jeferson Augusto*
Operário campeão. É preciso admitir: escrever essa frase, sem um resquício de ironia ou utopia, cravá-la da maneira séria e com a credibilidade que a palavra CAMPEÃO exige, era algo impensável pra quem lá atrás, há uns mais de dez anos, começou a ver um time ressurgir, ressuscitar, quase que literalmente. Convenhamos: 14 vices-campeonatos, 54 anos sem chegar a uma final, são dados que respaldam essa descrença.
E não falo campeão de uma segunda divisão estadual, ou um campeão do interior. Quando digo CAMPEÕES, me refiro aos maiores, ao olimpo futebolístico de quem mora nesse abençoado Estado do Paraná. Falo da glória máxima para um clube que se arrisca a se enveredar por estádios acanhados, jogar no mormaço de Paranaguá, atravessar quilômetros de ônibus até a Tríplice Fronteira, ir até a capital para entrar em uma Arena de Copa do Mundo ou atuar em uma estádio cujas arquibancadas são de grama, sob um conceito ‘ambiental – procurem por Eco-Estádio, casa de um clube mutante que já foi Malutrom, Corinthians Paranaense e hoje atende pela alcunha empresarial de J.Malucelli.
Quando digo Operário campeão, não me refiro a ‘Campeão do Interior’, migalha dada pelas federações aos chamados ‘pequenos’, título que vi fugir dos dedos do time de Ponta Grossa há quatro anos, em uma cobrança de pênaltis, numa noite gelada de domingo – foram tantas – em Vila Oficinas, com o goleiro Ivan batendo absurdamente mal e enterrando as expectativas de enfim presenciar alguém levantando uma taça no Estádio Germano Kruger.
Aquela campanha, em 2011, era o ápice que havia presenciado: terceiro lugar no Campeonato Paranaense, algo inédito em quase vinte anos. E naquela noite, se enquanto estivesse olhando para aquele grupo de jogadores empresariados por um obscuro conglomerado de empresários cariocas e gerenciados por Jair Pereira (sim, aquele), alguém me desse um tapinha no ombro e falasse, como que num consolo: “daqui a quatro anos esse clube vai ser campeão paranaense”, eu provavelmente daria um risinho e falasse: “não delira”.
É preciso contextualizar. Operário Ferroviário Esporte Clube, campeão paranaense de 2015 (como é gostoso cravar isso, reitero), nasceu há mais de cem anos, precisamente em 1912, nos banhados em torno da malha ferroviária – na época abundante na região – por um aglomerado de proletários, que cravou sua fundação no 1º de Maio, Dia do Trabalho. De lá para cá, foram idas e vindas, campanhas gloriosas que culminaram em 14 vice-campeonatos estaduais, alguns punhados de bons jogadores revelados e nenhum título. Repito: em mais de cem anos, nenhuma glória máxima pro clube que ganhou o apelido de Fantasma por em uma época ser o terror dos times da capital, ainda que isso jamais tenha resultado em uma taça estadual.
Some-se a essa trajetória errante o fato que em algum ponto dos anos 90 o clube ter fechado seu departamento de futebol, extinto o time e ter retornado a campo somente em 2004, na Segunda Divisão Paranaense. Para quem não sabe, a divisão – na época – mais baixa do futebol das araucárias é povoada por clubes com restritíssimos orçamentos, estádios mal ajambrados e elencos beirando o amadorismo. E por times tentando, de alguma forma, renascer.
Mas a Segundona é também um ótimo formador de caráter futebolístico. Porque é só vendo um time fracassar o tão sonhado acesso diante de clubes empresas de Maringá, ou uma aberração chamada Real Brasil – time empresa de um sujeito com aspirações suspeitas chamado Aurélio Almeida – ou ainda ir até Foz do Iguaçu e ter o desejo de finalmente subir para a elite estadual desmoronar – diante de uma briga generalizada que termina com seu time saindo de campo antes de uma cobrança de pênalti para o time adversário, aos 45 do segundo tempo – é que se cria uma espécie de carcaça, uma crosta que faz com que se guarde com segurança o sonho de que, um dia, esse time vai ser campeão.
O Operário só retornou à primeira divisão do Paranaense em 2009. Ali, há três anos, debaixo de um temporal absurdo, um empate sem gols diante de uma Portuguesa Londrinense, que jamais o time voltou a encontrar mas que enfiou uma bola na trave que ainda causa calafrios a muita gente, o alvinegro enfim conseguia uma glória digna depois de décadas. Era o ápice para quase dez mil pessoas que foram ao Germano Kruger, para um elenco que desfilou em carro aberto pela cidade.
Em 2014 quase atingimos o fundo do poço: campanha medíocre, o rebaixamento só evitado devido ao regulamento que previa um Torneio da Morte, para premiar os menos piores entre os lamentáveis. O Operário se salvou. E aí veio a ressurreição. Um grupo de empresários da cidade resolveu se aventurar e capitaneou um projeto para o clube.
Na década de 90, o alvinegro de Ponta Grossa foi realmente quase grande. Ainda que tenha faltado um título, não faltaram boas campanhas naquela época. Celso Reis, Chicão, Catani, Éder, Jocelí – e muitos outros que a memória não permite lembrar – durante uns três anos colocaram o Operário entre os melhores do Paraná, garantiram uma campanha na Série B nacional que foi até o quadrangular final, com Atlético-PR, Sport Recife e Catuense, isso em 1990. No fim, o alvinegro viu tudo ruir com o Atlético vindo a Ponta Grossa impor uma derrota (e protagonizar uma briga entre torcedores que virou uma espécie de lenda não oficial na cidade).
O que interessa é que nessa espiral futebolística, quem – no final de 2014 – resolve ressurgir e assumir o departamento de futebol é aquele que nos dourados anos 90 era presidente do Operário. Antonio Luiz Mikulis, empresário, ainda que recluso do futebol por anos mas com nome influente na Federação Paranaense, reuniu alguns outros amigos e botaram uma graninha em Vila Oficinas. Arrumaram patrocinadores, deram um tapa no Germano Krüger. Sim, porque até mesmo o acanhado estádio de Ponta Grossa (capacidade para oito mil pessoas) não escapou do processo de gourmetização do futebol. Ganhou uma área vip, com cadeiras padrão Fifa, retirada de alambrado e camarotes.
Um elenco foi montado aos padrões do técnico contratado. Itamar Schulle havia comandado uma extensa lista de equipes do interior do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Ao seu molde, o alvinegro ganhou cara: zaga alta, marcação forte no meio e aposta nas bolas aéreas. Como base, uma linha defensiva com dois zagueiros (Douglas Mendes e Sosa), um zagueiro improvisado na ala esquerda (Peixoto) e um lateral veloz e com cruzamentos quase assistências (Danilo Báia). Danilo, inclusive – e que fique claro que qualquer elogio daqui para frente releva o fato dele ser meu vizinho – foi considerado por muitos o grande nome da campanha do Operário. Dos pés dele saíram cinco passes para 14 gols na primeira fase do Estadual. No meio, dois volantes de contenção, do estilo pitbull marcando: Chicão e Lucas. No restante da meiuca, um volante com saída pro jogo, Pedrinho, e Ruy, meia habilidoso, cérebro do time. No ataque Juba, baixinho veloz pelas pontas, e no centro Douglas, centroavante alto, criado na cidade e autor de gols providenciais.
A campanha na primeira fase foi empolgante, de bons triunfos sobre o Atlético, Londrina e Prudentópolis, fechou na terceira colocação, com seis vitórias, três empates, duas derrotas, 17 gols marcados e dez sofridos. No mata-mata, pegou o Paraná Clube e decidiu em casa, aplicando 3 a 0 em uma das atuações mais convincentes do clube em anos.
A partir daí teve início a febre do Operário na cidade. Passou a ser quase consenso entre os quase 330 mil habitantes que em determinado momento de alguma conversa, o tema convergisse para a campanha do Fantasma. A final tão desejada há décadas, estava perto, um confronto contra um Foz do Iguaçu montado às pressas para o Estadual (herdou a vaga deixada pelo Arapongas, que desistiu da competição, botou em campo na primeira rodada um time sem reservas) não seria trágico demais para acabar com as pretensões de quem já aguardava há anos na fila. Depois de um 1 a 1 magro na Tríplice Fronteira, mais uma vez o Germano Krüger lotado resolveu o assunto: 2 a 0. Operário na final do Campeonato Paranaense. Dá pra acreditar?
Eu, admito, não acreditei, por muitas vezes. Por mais que lá na pré-temporada, sentado na arquibancada fria de cimento, tivesse comentado com algum setorista com décadas de rodagem de Operário, que aquele time era bom e poderia fazer uma boa campanha, não tinha tido qualquer tipo de previsão ou visão profética com isso. A final seria contra o Coritiba. O Coxa, time de primeira divisão, que não tinha lá um elenco muito brilhante, mas acumulava umas boas performances, sobretudo de Negueba (ressurgido das cinzas) e Rafhael Lucas, revelação e artilheiro do Estadual. Mas dane-se tudo isso, porra, era o Operário na final de um Campeonato Paranaense. 54 anos depois, o Fantasma voltava a decidir um título. 54 anos.
Durante duas semanas a febre operariana só se elevou. Fotos, matérias, camisetas e bandeiras a cada uma das esquinas entre as ladeiras da cidade. O número de sócio-torcedores – essa espécie de nova unidade de medida futebolística que virou praga nos últimos anos – multiplicou e bateu na casa dos dois mil associados. Até uma coluna da Folha de São Paulo falava sobre o Operário na decisão. Se você esperava alguma coisa diferente, volte para Marte.
Primeiro jogo: Germano Krüger, 7895 pessoas se acotovelaram pra ver aquele momento histórico. Já no primeiro tempo, 1 a 0 para os donos da casa: Peixoto, de cabeça, claro. Em seguida, mais um, desta vez Joelson, também após cruzamento, mas desta vez pelo chão. Ainda caberia mais, diriam os mais empolgados. Mas nunca um primeiro passo havia sido dado de forma tão concreta na história do Operário.
Segundo jogo: pelas normas da física, uma semana é composta por sete dias, 168 horas, 1.440 minutos e 604.800 segundos. Mas aquele período entre o dia 26 de abril e 3 de maio parece ter durado uma eternidade. Levaram décadas até que chegassem às 16 horas daquele domingo com sol entre nuvens sobre o Major Antônio Couto Pereira, no Alto da Glória (não poderia haver um local com nome mais adequado para façanhas), na capital paranaense. Pelo regulamento, o Coxa precisaria vencer por dois gols para levar a decisão para os pênaltis. Ao Operário, um empate ou até derrota por um gol o salvava. Uma vitória, a glória; uma derrota por três ou mais gols de diferença, aquela tragédia às quais o torcedor operariano, no fundo, já havia se calejado.
Os primeiros minutos foram daquela tensão que ronda qualquer decisão, aliada à notável técnica menos rigorosa dos campeonatos paranaenses, numa adaptação o Arsenal de Nick Hornby às peladas das araucárias: “uma eternidade de jogos muito ruins, repletos de empates sem gols, derrotas amargas e poucas vitórias apertadas” (mas que se dane, assim como Hornby sempre voltava a Highbury, nós sempre voltamos aos Germanos Krügers, Coutos Pereiras, Estádios dos Cafés e Vilas Capanemas das tardes e noites frias de futebol pouco vistoso). Um 0 a 0 tenso, sem grandes oportunidades – exceto por uma cabeçada de Douglas Mendes no primeiro tempo, que só reagi com um “tomara que não faça falta mais tarde” – e com uma marcação cerrada do Operário, caçando cada tufo de grama do Couto Pereira.
Ao voltar do intervalo o Coxa sabia o que tinha que fazer, tal qual fez na semifinal diante do Londrina, também em casa: pressionar já nos primeiros minutos e arrancar um gol para desestabilizar tudo. Até tentou, mas sem muita eficiência, parou uma vez no goleiro Jhonatan. E aí, aos doze minutos, Lucas recebeu na ponta direita, se livrou da marcação – uns dizem que ele aplicou um drible pelo meio das pernas, eu revi o lance várias vezes e ainda não tenho um veredito – e cruzou para Juba, que bateu de primeira. 1 a 0. Inacreditável. Estava cada vez mais perto. Era questão de tempo agora, segura o ímpeto dos Coxas, toca a bola de lado, se necessário, ei, Itamar, que tal botar mais um volantezinho ali no meio, só para garantir? Mas o que mais deixou muitos boquiabertos é que o Operário seguiu como se estivesse jogando a primeira partida ainda, marcando forte, apostando nos contra-ataques e sabendo que não poderia errar. Aos 30, em uma troca de passes que talvez demore para ser esquecida, Ruy recebeu na entrada da área e com uma frieza tirou de Vaná, ampliando em 2 a 0. A essas horas, admito, virei para meu irmão e falei: campeão, porra. Dois minutos mais tarde Juba ainda faria um terceiro, no rebote, para sacramentar um título que – repito – demorou para ser acreditado.
Cerca de três mil fanáticos viajaram cerca de 130 quilômetros de Ponta Grossa até Curitiba naquele domingo e viram uma história sendo escrita. Aquela gente já estava calejada de derrotas amargas para Real Brasil, Arapongas, Campo Mourão, Império Toledo, Nacional de Rolândia, entre tantos outros nomes não tão gloriosos do futebol paranaense.
Ponta Grossa tem como ponto de comemorações a principal avenida, Vicente Machado (ainda que o time da cidade não tivesse ganho quase nada até então, é para lá que torcedores de outros times vão celebrar suas conquistas), que naquele domingo virou um carnaval como não há na cidade. Um temporal – tal qual naquele domingo de 2009 quando enfim voltou à elite estadual – caiu sobre todos, que claro, não estavam nem aí. Afinal, o Operário é campeão paranaense. Dá pra acreditar? Talvez não.
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*Jeferson Augusto é jornalista, editor-chefe do “Diário dos Campos” e co-autor – ao lado de Bruno Henrique Ferreira – do livro “Operários da Bola”