Contexto: domingo, final de Campeonato Paulista, lado de fora do estádio do Palmeiras (desculpe pelo prejuízo, Allianz). A torcida protesta contra os preços dos ingressos. Duas grandes bandeiras em forma de dólar estão expostas, e uma faixa chamando o ingresso de “mais caro do Brasil” também. Este protesto foi absolutamente ignorado por rádios, tevês, sites, blogs, pessoas. Ninguém protesta para si mesmo, para ser ignorado.
Dez dias depois, o Palmeiras anuncia a “cara nova” de seu Avanti: mais de 50% de “reajuste”. Inacreditável. Um “prêmio” pela adesão dos últimos meses, uma afronta a quem se dedica e se esforça para pagar, um retrato de Paulo Nobre, um tapa na cara que não encontra atenuante nem na tal da lei do mercado, essa abstração de adultos melancólicos. Um aumento de 10% era esperado. Fomos explorados, sem meias palavras. Esfaqueados. Próximo jogo, sábado, Atlético-MG, reação.
Não sou da Mancha Verde. Não assisto aos jogos nela, nem frequento a quadra ou desfilo pela escola de samba. Tenho distância e independência para falar de seus erros, e não assino embaixo das merdas de ninguém, só das minhas. A luta dela por ingressos populares e um Palmeiras menos insano é um acerto. Topo discutir, noutra hora, toda a estrutura contaminada de todas as organizadas desta cidade, o papel de seus líderes e a necessidade de outra abordagem nas pautas sobre violência. Aqui, agora, não: ela está correta em seu protesto. Ficar calado no estádio é bacana? Claro que não, queria a Mancha cantando e o time certamente sentiu falta.
Mas era preciso chamar a atenção das pessoas para uma discussão. É curioso: quando agiu do jeito certo, ela foi ignorada. Quando fez do jeito errado, foi escutada.
Guerra de classes
O momento do Palmeiras é muito mais delicado do que as boas aparências sugerem e decisivo para nosso futuro enquanto clube. Posicionar-se é preciso e ser morno, cinza, é inútil. Existe um simulacro da guerra de classes dentro do Palmeiras. Cada gesto pequeno movimenta as peças neste tabuleiro, a gente subestima isso mas já são muitos gestos, notadamente desde a inauguração do estádio.
O sábado foi mais do que o “ei, mancha, vai tomar no cu”, que precisa ser levado muito a sério para entendermos o processo pelo qual passamos, e sobre o qual o endiabrado e dissidente irredutível Rodrigo Barneschi escreveu muito bem em seu blog pessoal.
Teve também a histeria generalizada por causa da presepada envolvendo CBF e Allianz. O nome da empresa foi coberto por alguns minutos nas placas do estádio, e muito palmeirense concluiu: complô! Foi a maior defesa popular de uma empresa privada da história do twitter. Como se Palmeiras e CBF fossem inimigos políticos, e não são. A CBF, que marcou jogo da seleção justamente no nosso estádio, não tem ninguém capaz de somar 2+2, é verdade. Isso não dá ao palmeirense o direito de fazer a soma e dar cinco como resultado.
CBF, Allianz, Paulo Nobre, WTorre, ninguém abriu discussão sobre o protesto nas ruas, nem perguntou nada a nenhum de nós antes de “reajustar” o Avanti. Eles cagam para o torcedor do nosso tipo. Por que eu deveria me importar com o mal entendido deles? Que se matem, que se virem. Defender quem investiu (e isso é diferente de doar dinheiro, prejuízo hoje é só o torcedor que tem) no Palmeiras? Hm, é, curioso, durante o campeonato paulista era proibido colocar bandeira do Palmeiras em cima do nome/logo “Allianz Parque”. Ninguém pareceu indignado.
Eles estão de um lado. Todos eles, inclusive a voz oficial da Sportv, que, em um gesto incomum dada a delicadeza sentimental-editorial da dita cuja, chamou de “gente de bem” aqueles que xingavam a própria torcida. Eu estou do outro lado. Cada um que se posicione. Só não sejam inocentes: dói dizer, mas nunca o Palmeiras esteve tão rachado, desunido, e isto está diretamente ligado com a forma de gestão do estádio novo, sua precificação, suas imposições, sua poluição, seu não-diálogo. O Valdívia era uma metáfora disso, metade do estádio gostava, metade não gostava. Nem isso o chileno consegue mais ser. O Palmeiras está indo em uma direção de inevitável conflito, justamente por não ouvir a torcida nem respeitar a história, do clube e da cidade, das pessoas da cidade.
Febre
Trecho do livro Fever Pitch, do inglês Nick Hornby, com negritada minha:
“Os grandes clubes parecem ter se cansado das suas torcidas, e sob certo aspecto quem pode culpá-los? Jovens trabalhadores e homens de classe média baixa trazem consigo problemas complicados e ocasionalmente perturbadores; os diretores e presidentes podem argumentar que eles tiveram sua chance e a desperdiçaram, e que as famílias de classe média – o novo público-alvo – não só irão se comportar bem, como pagar muito mais para fazê-lo.
Esse argumento ignora questões básicas que envolvem responsabilidade, justiça e o papel que os clubes têm ou não a representar nas suas comunidades. Mas mesmo sem essas questões, parece-me haver uma falha fatal nesse raciocínio. O prazer que um estádio de futebol pode proporcionar é, em parte, uma mistura do vicário com o parasítico, porque a não ser que a pessoa poste-se no Lado Norte, no Kop ou na Ponta Stretford, fica dependendo dos outros para que a atmosfera seja criada; e a atmosfera é um dos ingredientes cruciais da experiência futebolística. Essas torcidas imensas são tão vitais para os clubes quanto os jogadores (…) porque sem as torcidas ninguém se daria ao trabalho de ir ao jogo.
Muita gente – o pessoal das cadeiras que custam vinte libras, e os caras dos camarotes-executivos – também paga para ver a torcida que foi lá ver Paul Merson. Quem iria comprar um camarote-executivo se o estádio estivesse cheio de executivos? O clube vendia os camarotes incluindo a atmosfera de graça, de modo que o Lado Norte gerava tanta renda quanto qualquer um dos jogadores. Mas quem irá fazer o barulho agora? Será que a garotada suburbana de classe média ainda virá com suas mamães e papais se o barulho tiver de ser feito por eles mesmos? Ou será que se sentirão tapeados? Porque a realidade é que os clubes estão lhes vendendo ingressos para um espetáculo no qual a atração principal foi afastada para dar lugar a eles“.
Na mosca. Um estádio é também uma intenção de sociedade. O Brasil tem se tornado muito intolerante. O Allianz Parque mandou, dia desses, a Dilma tomar no cu. A Mancha Verde foi o alvo da vez. O subtexto destas revoltas ligeiras é semelhante. Não estamos dando a devida atenção aos sinais. A cada jogo o estádio é mais hostil para quem é minoria, para quem questiona, para quem não se adapta, para quem vai contra essa marcha acrítica e raivosa incapaz de entender as demandas de muita gente varrida do estádio, afastada para dar lugar justamente a raivosos acríticos que nenhum engraçadinho na tevê presume ser bandido.
Prestem atenção. Não se desfaçam de algo que pode não ser substituído. Não ajam antes de entenderem muito bem o que está acontecendo ao nosso redor, em nosso lugar. Não se façam de sonsos. Não se pautem pelo ódio estabelecido no passado, pois não é só o estádio que é novo. Botem a cara na questão, pois é disso que o Palmeiras precisa. Eu abreviei meu descanso e agradeço aos que pediram isso. Ainda tenho algum fôlego. Muita gente me motiva a usá-lo até o fim.