Tomo minha soda e digito mensagens na tela do celular quando ela, cílios grandes, pede para eu tirar o saco de roupas da poltrona, a poltrona 42, que é dela. Claro. De nada. Boa noite.
Dormir, antes de tudo, é um ato de confiança. Em estado de alerta ninguém permite-se o sono, dormir rodeado de estranhos não é usual e esta máxima é fortemente desafiada em um ônibus rodoviário, viagem longa, madrugada adentro. Posso ligar a luz ou te atrapalha? Fique à vontade, e então pego meu livro. É inquieta, a garota loira. Mexe na bolsa, remexe, procura na mala algo que parece não existir, e põe o casaco, depois tira, desdobra a manta, regula a poltrona, sossega. Dorme.
Com o canto dos olhos enxergo o inevitável conflito. Tem um sono peculiar, a mulher, e desmilingue até dar com o rosto em meu ombro. Desculpa. Tudo bem. Não demora três segundos e outra pancada das mais doces chega no braço direito. Agora não há pedido de desculpa. Temos um hábito assumido entre nós. Ela faz o caminho entre sua poltrona e meu ombro mais dez ou onze vezes, deveria ter contado e anotado. O livro estava em um bom momento, mas quem poderia competir com esta atração? Estava divertido.
Até que a viagem não teve volta. Do jeito que bateu, ficou. O cabelo no rosto por deslizar na poltrona, a testa no ombro e o nariz na marca de vacina. Fazia barulho, a coitada, não era ronco mas a respiração, profunda, parecia aflita e assumi que ela babaria a qualquer momento. E eu deixei, até porquê aprendi que você só acorda alguém em caso de absoluta necessidade. Deveria ser crime, inclusive, despertar o outro por motivo banal. Além do mais, estava tudo bem para mim. Nem tanto quando a coisa piorou.
A garota sem coluna vertebral derrete aos poucos e está, há alguns minutos, com o nariz quase em minhas axilas. Uma hora ela vai acordar, talvez sem ar, e, desorientada, pode me acusar de aproveitador. Mas eu estava aproveitando, mesmo, saboreando o inusitado. Tenho uma ideia. Fecho o livro. Vou desligar a luz. Para isso, mexo o braço. Bingo. Desperta e desorientada, presume o que acontecia. Sem vestígios de vergonha protocolar, manda um “pô, foi mal”, e me abre a noite em ternura. Não foi nada, fica tranquila. Ela aceita. Seu sono é muito pesado. Ela sorri. Eu vou dormir também. Ela ouve. Se quiser encostar, encosta, só não vá dormir toda torta. Ela aceita. Com o casaco cria um pequeno travesseiro e, sem cerimônia, dorme em três segundos, o pescoço vira gelatina mas a cabeça, enfim, está escorada.
Antes de dormir, eu penso no blog da Central 3 e no texto que tenho a escrever. Qual o quê! Joinville x Palmeiras, um espetáculo capaz de tirar o amor de qualquer criança pelo esporte? A CBF tendo de explicar cláusulas contratuais que vinculam convocações a valores de mercado? Galo x Flu em Brasília, nenhuma cancha lotada, 30% dos jogos com portões fechados? Times reservas, os cavalinhos de pelúcia dando a classificação no Fantástico, a horrível sensação de que faltam 36 rodadas? Ah, não, eu vou escrever sobre esta figura de notável desprendimento, que a esta altura já esparramou-se de novo, no meu peito.
Seis da manhã, sinais de céu amanhecendo, luzes do ônibus acesas, eu acordo. Posso me movimentar, o rosto dela está entre as poltronas. Ao vestir meu tênis percebo o quão tortas, molengas, estão suas pernas, é engraçado. Uma leandrada final acontece quando ajusto minha poltrona para a posição vertical, o que representa, evidentemente, agredir a garota – que não acordou ainda – com violência importante. Lá se foi o meu “ei, dorminhoca, já chegamos, tenha um bom dia”. Zonza, em alguma esfera profunda do sono interrompida, pega seus dois volumes com pressa, se levanta atrasada, faz a fila para descer logo. Quando recobra um pouco de consciência, vira-se pra trás e dá um pequeno aceno de mão, de tchau, e um mínimo sorriso que já é muito a quem, afinal, ela sequer conhece.
Eu dizia que dormir, antes de tudo, é um ato de confiança. Esta garota subverteu minha frase feita.