Ato 1
Edward Snowden é o protagonista no excelente documentário “Citizen Four” ganhador do Óscar de melhor documentário em 2014. Para nós, brasileiros, o filme soa como uma história de ficção científica, mas para os cidadãos americanos, o que Snowden confidencia é uma realidade presente e assustadora.
Snowden trabalha em uma empresa terceirizada que presta serviços para a NSA, a Agência de Segurança Americana. O órgão ganhou os holofotes principalmente pela execução do “Ato Patriota” aprovado pelo congresso após os atentados de 11 de Setembro.
O Ato Patriota visa minimizar as possibilidades de que um possível atentado ocorra futuramente. Basicamente, ele permite o monitoramento de determinados cidadãos 24 horas por dia, via transações de cartão de crédito, ligações telefônicas, interações online e em alguns casos até por gravações de vídeo feita por drones.
Por trabalhar diretamente na manutenção dos softwares da NSA, Snowden é capaz de falar minuciosamente sobre o que o governo americano pode saber sobre qualquer cidadão americano ou estrangeiro através dos seus mecanismos de vigilância.
Desde 2001, a NSA recebeu diversas acusações e processos formais, mas o número de cidadãos monitorados cresce ano a ano.
Ato 2
Na terceira rodada do campeonato brasileiro, o surpreendente Atlético Paranaense faz um jogo inteligente e vence o seu xará mineiro com maestria. A arbitragem de Thiago Duarte Peixoto chama atenção pela rigidez. Ele aplica um cartão amarelo para o atacante Douglas Coutinho que comemorou junto à sua própria torcida e expulsa o matador Walter que teria proferido impropérios à sua pessoa. O goleador pode pegar até 12 jogos de suspensão.
Duas rodadas depois, o mesmo árbitro apita Santos e São Paulo e por conta de algumas marcações controversas, provoca a ira de Rogério Ceni, que recebe o cartão amarelo. Ao final do jogo, o goleiro critica a empáfia do árbitro e a necessidade de se distinguir quem se dirige ao árbitro com educação de jogadores que proferem palavrões ou xingamentos.
https://www.youtube.com/watch?v=dH1R2AVIACQ
A sociedade do controle
Prevenir é melhor do que remediar
Quando se aprofunda o conhecimento, é possível encontrar paralelos em agentes tão distantes quanto um mecanismo de combate ao terrorismo e uma determinação da CBF sobre a maneira como os árbitros devem aplicar cartões.
Conforme os americanos desenvolveram softwares inteligentes para combater ataques extremistas, aconteceu uma mudança singela, mas profunda no modo como encaramos o terrorismo. Antes do 11 de Setembro, pessoas eram perseguidas APÓS praticarem delitos. Depois dos ataques que culminaram na queda das torres gêmeas, o país passou a monitorar cidadãos americanos e estrangeiros de maneira a apreende-los ANTES que eles pudessem cometer crimes.
Alguns casos tragicômicos vieram à tona como o rapaz que pesquisou os termos “maneiras de matar sua mulher” e “como esconder corpos” no Google e recebeu uma visita nada agradável do FBI apenas para constatar que ele era um escritor de séries de TV.
Nos últimos anos, milhares de manifestantes foram apreendidos antes mesmo de conseguirem protestar, mentes criativas foram proibidas de fazer flashmobs e turistas foram impedidos de entrar nos EUA por terem escritos tweets de duplo sentido mal compreendidos por agentes da lei.
De maneira análoga, a CBF busca impor uma medida que confere menos subjetividade à decisão do árbitro. Não cabe mais a ele compreender e interpretar o tom e o conteúdo dos jogadores que se dirigem à eles.
ANTES que aconteça qualquer problema maior, é mais prudente o juiz aplicar o cartão amarelo independentemente se o interlocutor o mandou tomar no cu (como o Walter) ou lhe pediu maior atenção (Ceni).
A medida “tolerância zero” da CBF está fazendo com que o número de cartões em 2015 seja seis vezes maior do que o do ano anterior e têm gerado situações bizarras como no jogo de ontem no qual o Internacional cometeu apenas quatro faltas no jogo, mas recebeu um total de cinco cartões amarelos e um vermelho.
Seja um sistema ultra complexo criado por um dos governos mais poderosos do mundo ou uma medida imposta de maneira arbitrária por uma entidade descreditada, qualquer método que se baseia na PREVENÇÃO ao invés da REAÇÃO contará com falhas. Ao bancarmos o Minority Report estamos fadados a confundirmos terroristas perigosos com manifestantes legítimos, jogadores desrespeitosos com jogadores cordiais.
A renúncia da liberdade e do diálogo
Ainda que os sistemas tenham seus pontos negativos, eu entendo o motivo de um governo ou da CBF implementarem seus aparatos com base em objetivos bem definidos. No limite, com um equívoco aqui outro ali, milhares de terroristas são presos antes de cometerem crimes e um punhado de jogadores são advertidos antes de causarem maiores tumultos para a partida.
O que eu não entendo é como esse tipo de medida tão controversa é tão facilmente absorvida e até incentivada pelas pessoas.
Alguns irão dizer que a vigilância é uma contrapartida justa para evitar o terrorismo e que se fossem monitorados, o governo não acharia nada. Quanta ingenuidade! Em algum momento da sua vida, você já recebeu ou enviou algum conteúdo que flerta com algum tipo de ilegalidade e isso já seria o suficiente para você ir preso, caso fosse interesse do governo.
Quando um governo se permite coletar todos os dados possíveis sobre a sua pessoa, você basicamente perde todo e qualquer direito que te torna cidadão. Quando o governo sabe que você irá realizar um protesto e o prende antes que de você fazê-lo, como fica a sua liberdade de expressão?
Deixando o campo da política e voltando para o nosso futebol, vejo algumas pessoas defendendo a ideia de que o juiz é a autoridade máxima no campo de futebol e deve ser “intocável”. Discordo.
Entendo que o juiz deve conquistar o seu respeito e sua legitimidade impondo sua autoridade e sabendo ponderar quando ele deve ser mais tolerante ou mais rígido.
O jogador, por sua vez, deve aprender a dialogar com a arbitragem buscando os seus objetivos dentro de campo. O limite entre o que pode ou não ser dito é uma dinâmica que deve ser estabelecida dentro de campo, jamais em um escritório. O jogador deve aprender o que pode falar e como e não aprender simplesmente que ele não pode falar por mais de 10 segundos.
Fico preocupado quando vejo pessoas aceitando e até defendendo imposições de maneira tão passiva. Seja como cidadãos ou como jogadores de futebol, devemos batalhar pela difusão do conhecimento, pelo debate e pelo respeito e não podemos aceitar que somos vigiados e temos que permanecer calados para não sermos punidos.
Nós fazemos muitas concessões sem nem ao certo sabermos o que estamos levando em troca.