… estão mais presentes que os vivos
Um dos fatos políticos mais interessantes que passaram pelo Brasil na última semana foi a Caravana 43 Sudamerica, excursão que exige esclarecimentos do governo mexicano sobre o desaparecimento de quarenta e três estudantes da Escola Normal Rural Isidro Burgos, em Ayotzinapa, estado de Guerrero.
Repetição brutal de crimes de Estados dos países latino-americanos contra seus povos locais, especialmente os que guardam relação com os originários, o episódio ocorreu no dia 26 de setembro de 2014.
Enquanto Dilma Rousseff visitava Enrique Peña Nieto, presidente eleito sob contestação, um sobrevivente do massacre e três dos pais dos estudantes rodam a América do Sul em busca da ampliação do apoio à causa.
“Não queremos nenhum apoio dos governos, por isso não estamos preocupados com o encontro entre os dois presidentes. Queremos apoio apenas dos movimentos sociais e quem se solidarize”, disse Francisco Nava, o estudante em questão, na entrevista coletiva de terça-feira, 2 de junho, ao responder se procuraram apoio oficial.
Guerrero é um dos estados mexicanos sob domínio de uma relação entre Estado e narcotráfico que penaliza os mais fracos em favor do poder econômico, legal ou não, com laços por vezes diretos entre um e outro, como sustentaram os mexicanos em viagem. Massacres como o de Ayotzinapa estão registrados aos montes nas últimas décadas do país norte-americano.
“As escolas rurais existem onde a economia formal é menos avançada e formam muitas pessoas que defendem o direito a terra dos povos locais”, disse Francisco, que entre outras coisas contou como foi o fatídico encontro com a morte, em emboscada que afirmam ter sido provocada pelas forças de governo, além do obscurantismo do poder público em contribuir na elucidação dos fatos.
Entre os atos políticos que pautaram a passagem da caravana pelo Brasil, esteve o amistoso da seleção local neste domingo, realizado no novo estádio do Palmeiras.
Enquanto o escrete dunguista se preparava para enfrentar a tricolor azteca – de vestes enlutadas, mas por razões de mercado – alguns ativistas, também de preto, circulavam o estádio com cartazes em nome dos desaparecidos e incomodavam os repórteres da mídia que cobria a partida.
Indo e vindo pelo entorno do ambiente, conseguiram algum espaço, ainda que o assunto estivesse claramente fora da pauta de quase todos os veículos brasileiros.
Mais ou menos uma hora antes de rolar a pelota, cheguei com um amigo – aliás, de um jogo daqueles que ainda parece ‘de verdade’, nosso, com o perdão da pretensiosidade.
Descemos a Tanabi, uma das amáveis ruas que baixam no antigo Palestra, e vimos um cinquentão tomando cerveja na frente de casa, em copo de vidro, com camisa vermelha de Che Guevara, observando o movimento.
Chegamos à Turiassú (ou portão A) e começamos a apreciar a nova fauna que habita os jogos de futebol. É difícil explicar, mas não havia nada da energia e da tensão que sempre cercaram um jogo. Ninguém aparentava preocupação. Aquele retrato já conhecido da tal “família”. Lugar de gente feliz.
Ao lado de um dos bares, alguns rapazes tinham pendurada a faixa “Torcida de Futebol do Brasil”, e uma meia dúzia tentava criar qualquer coisa parecida com uma torcida organizada dos moldes que conhecemos. Mas não dava nem pra torcida de jogos universitários.
“Esses comunistas deviam procurar coisa mais produtiva pra fazer”, disse um sujeito de camisa da Mancha Verde, em outro bar nas redondezas do estádio.
Daqui a pouco vai virar “comunista”, se por acaso perceber que seu jeito de ser está seriamente ameaçado pelo modelo de futebol em voga. Aliás, a própria Mancha tem feito protestos recentes, ficando em silêncio boa parte do tempo de forma proposital.
Mas, no geral, era a indiferença que marcava a impressão dos brasileiros, salvo um ou outro curioso. Por sua vez, os poucos mexicanos aparentaram respeito pelo ato.
Rumo ao jogo, um conhecido é visto pela turma do protesto.
“Ô, você aqui? Beleza?”, indagaram, rindo.
“Pô, e aí, beleza e vocês?”, respondeu, envergonhado.
“Veio ver o jogão?”
“Vim né, mas só porque ganhamos os ingressos, ela queria vir”, disse, apontado para a tímida acompanhante.
“Vai lá na Javari”, devolveu um dos solidários a Ayotizinapa.
“Vou, lógico. Vocês sabem que eu nunca ia dar 300 reais pra isso”, defendeu-se o passante.
“Relaxa, velho, vê lá o jogo”.
“Verdade”.
“Relaxa”.
Volto pra casa e fico vendo a partida.
“A seleção também joga com portões fechados?”, ironizou meu irmão, diante do silêncio digno de torcida de tênis em Wimbledon.
“Você acha que no dia do 7 a 1 quem tava ali no Mineirão tava puto de verdade depois do jogo? Todo mundo ali saiu pra jantar, comeu uma pizza e ficou falando de qualquer assunto, rindo numa boa. Acha mesmo que a maioria ficou dois dias sem dormir?”, retruquei.
Coisa de maluco a ausência de qualquer barulho, até deu pra ouvir uma ou outra voz sozinha xingando alguém, como naqueles jogos de um Icasa da vida em má fase com corneteiro atrás do banco de reservas.
Quando as vaias enfim ganharam vulto, após quase 30 minutos sem nenhuma manifestação de relevo dos presentes (?), uma jogada pela esquerda terminou em gol de Philippe Coutinho.
Pouco depois, 2-0. O jogo seguia sem qualquer manifestação digna de nota do público, em termos de interação com o jogo, o time, o que quer que fosse. Já na segunda-feira, até fiquei sabendo que “vaiaram o Fred errado”, um jovem que joga na Ucrânia, enquanto os “torcedores” pensaram ser o centroavante do Fluminense.
Muitos dos que apenas protestaram do lado de fora pelos desaparecidos mexicanos amam e vivem futebol diariamente. Muitos dos que entraram pareciam ver um jogo, um passeio no shopping, uma queima de fogos em Copacabana ou um almoço na steakhouse da mesma forma. Aquelas 43 almas pareciam as mais vivas do domingo.
Leitura recomendada: