Por Victor Faria
Se eu ainda quisesse contar agora a história da bandeira inglesa, a que fui encorajado há alguns dias, ou semanas, numa roda de amigos, teria de começar mencionando aquele velho estilo de jogo que me ensinou a admirar a bandeira inglesa, a admirar pela primeira vez; teria de contar outras aventuras daquela época, da vida, da minha paixão pelo futebol, do que ela se nutria e de quais acasos – como, aliás, de tudo reconhecido no decorrer do tempo como destino por lógica ou falta de lógica – ela dependia; eu teria de contar quando essa paixão começou e para onde ela finalmente me levou; resumindo, eu teria de contar quase minha vida inteira.
Com quais esperanças, meditei em voz alta e abertamente junto àquela roda de amigos que tinha me encorajado a contar a história da bandeira inglesa. Vejo hoje, como num filme, o jovem (ele não deveria estar nem na casa dos vinte anos) que, por conta da confusão dos sentidos da qual sofremos, considerava e sentia como eu próprio, e é provável que isso tenha sido influenciado pelo fato de que ele, assim como eu, tenha se visto como num filme. Sem dúvida é exatamente isso que torna a história possível de ser contada. A vida desse jovem só se manteve porque era possível de ser lembrada.
Pelo futebol, essa epiderme sobre as camadas de minha existência, eu tocava o mundo como que através de uma bola que ao chão rola. Esse mundo suavizado pelo futebol, distanciado pelo futebol, mesmo quando falseado, era para mim o único possível de ser vivido, por vezes até um mundo suportável.
Entretanto, naquela época, não possuía formulações acerca do sentido histórico daquela partida. Era apenas um fato com o qual eu tinha de viver e assim o queria. Muito mais importante para mim era o costume do herói da partida, um gênio de profissão aventuresca, capaz de presentear o espectador com um lance, um drible, uma passe, um quase gol. Essa partida me ensinou que, nas raras pausas de sua existência torturada, o homem precisa de prazer.
Naquela época, os dias, dias comuns que iam do nascer do sol até o pôr-do-sol, tinham se tornado uma infâmia sistemática. O motivo podia ser que, como já disse, as partidas serviam apenas para fazer com que minha vida continuasse do nascer do sol ao pôr do sol, enquanto eu encarava a vida como algo dado, como o ar que eu tinha que respirar ou a água onde tinha de nadar. Nalgum canto havia de ter meninos jogando futebol. A prática não atentava ou servia para o conhecimento da vida, em vez disso, dispunha-se para a possibilidade de viver a vida, ou seja, o jogo servia apenas para evitar sua exposição.
Os processos que ocorriam naqueles anos não me atingiam no âmbito moral e por isso não me provocavam maiores reflexões. Os efeitos estavam ligados à consciência sensorial, o horror, depois o susto, estranheza, incredulidade temporária, insegurança generalizada e assim por diante. Eram os primeiros sintomas da guerra, uma onda febril era sentida em todos os quatro cantos do mundo.
Lembro-me que, numa dessas noites de patriotismo exacerbado, um figurão do partido, alguém respeitado e temido por todos, apresentou aos jogadores sua atual formação teórica, seu plano de avanço tático. Com o passar do tempo a desenvoltura do time pelos meses de treinamento, era evidentemente oposta à condição política do país. O orgulho pelas 23 partidas invictas serviam de subterfúgio ao poder local. Estavam em preparação para a partida do século.
A chegada em Wembley fora conturbada, mais de 100 mil pessoas lotavam o estádio. A bandeira imponente, um sem-número de torcedores, jornalistas, um sem-número de fontes sonoras que nessa noite haviam de ser calados, desligados e arrumados, transformados num grupo de devotos espectadores sentados em admiração ao treinador que os doutrinava. Não tinha pressa pelo fim do jogo, o apito final, chamava alguns jogadores para conversas a dois para que saíssem da forte marcação inglesa, que se libertassem até um suspiro de alívio devido aos gols.
Os jogadores sabiam exatamente quais eram os planos do adversário e toda jogada visitante se tornava magistral, ensaiada à exaustão e perfeição. Pude notar o momento em que os dois atacantes saíram da área rival deixando livre a entrada para quem vinha de trás, o armador do time. Um silêncio inesperado rompeu o campo, um silêncio que aparece às vezes no cair da noite de dias insuportáveis de guerra. Ali se desenhava uma lição em evidente massacre.
Muitos torcedores ingleses abandonavam o estádio mais cedo, talvez incrédulos com a supremacia, desgostosos com a derrota. A cada lance dos Mágicos Magiares, a aparência de uma existência tática superior, intelectual. A geração inventora do futebol se contentava melancolicamente em ser coadjuvante no seu próprio palco, diante de sua própria bandeira. A única no estádio a não abandonar seu posto, apesar da trágica derrota.
Naquela tarde de novembro, em Londres, tive a certeza de ter vindo ao mundo para testemunhar aquela partida, aquela verdade. Por 90 minutos fui Hidegkuti, Puskás, Bozsik, Kocsis, Sebes etc. Não havia lição mais definitiva que essa, nenhuma experiência mais completa.
Uma outra questão é, pensei, para que tudo isso, para que essa experiência? Quem enxerga através de nós? Vivenciar aquele jogo significou um favor divino, um testemunho. E enquanto a atenção se voltava aos jogadores que a Budapeste retornavam, aos copos que se levantavam e brindavam para festejar a vitória, pensei, com determinado alívio cheio de expectativa, que não preciso mais entender o futuro promissor que nos ameaça hoje de todos os lados.