Por Victor Faria
Esta é a pequena história de Jorge Amado e Castor de Andrade e de alguns outros amantes de times do povo, de raízes operárias, baseadas em suor, fé e lágrimas. Nela se narram, para que sirvam de exemplo e advertência, acontecimentos sem dúvida inesperados e curiosos decorridos na Cidade da Bahia, noutro lugar jamais poderiam ter acontecido. Vale saber que tudo se passou num tempo curto e perpetuado ao longo dos meses de 1988 até meados do ano seguinte, por aí assim. Não se buscou explicação, uma história se narra, não se explica.
Naquele dia, em intempestivo horário vespertino, despontou na Bahia de Todos-os-Santos, procedente do Rio de Janeiro, o Viajante sem Porto, as velas enfunadas – o mar é um campo azul, disse o amigo ao escritor. Não se ouviu a voz de Jorge, desfalecendo na dolência de uma cantiga de amor.
O saveiro recebera em Moça Bonita o encargo, melhor dito a missão, de conduzir à Salvador a imagem de Nossa Senhora Aparecida, famosa por ser milagreira, emprestada pela paróquia do subúrbio carioca, com indisfarçável relutância do vigário, para ser exibida em apregoada Exposição de Arte Religiosa, glosada em prosa e verso pela imprensa e pelos intelectuais. Para atender à sagrada incumbência, mestre Manuel cancelara a partida matutina, atrasando-a de quase doze horas, mas o fizera com satisfação: pagava a pena, e Dom Castor não pedia, ordenava.
Ajudados pelo vigário e pelo sacristão, entre orações e aplausos de irrequieto grupo de beatas e alguns fiéis torcedores, o padre e a freira procederam à cerimônia do embarque. Na descida escorregadia, porém, preferiram confiar o andor com a imagem peregrina às mãos marinheiras de mestre Manuel e de sua mulher Maria Clara. Ali, de pé, a majestosa efígie da santa católica semelhava carranca de barro, votiva figura de proa, entidade pagã e protetora.
Sentada junto ao andor, Maria Clara cuida da estabilidade da imagem, impede que os solavancos ameacem seu equilíbrio. Contudo a freira, escondida no hábito surrado e severo, temeu pela segurança da santa enquanto durou a travessia, mas nada disse, não deixou transparecer a inquietação, apenas rezou, passando e repassando as contas do rosário. Só respirou aliviada quando o saveiro embicou para a rampa do Mercado. Irmã Eunice cerrou os olhos, deixou escapar um suspiro de desafogo e pôde, enfim, sentir a doçura da viração.
O padre não parecia padre, esses reverendos de hoje são uma novidade. Como reconhecê-lo sacerdote se trajava calça jeans, camisa floral aberta e não se via coroa raspada? Um homem bonito a atrair olhares femininos. O hábito não faz o monge, ensina o povo em sentença anterior às mudanças de vestuário e comportamento. Era sincero na vocação e no apostolado. Na distante freguesia que lhe coubera, os paroquianos eram pobres de Deus, servos dos ricos, sujeitos à lei imemorial da violência.
Para Castor a viagem parecera ainda mais longa, infindável. Tinha razões para acreditar que não fora chamado a Salvador a fim de receber louvores. Ouvira despropósitos e ameaças, lera notícias nos periódicos, denunciando e condenando a ação de certas negociações de dirigentes. Todos sabem; de nada adianta saber, a terra tem donos, uns poucos, porém implacáveis.
O sol derrama ouro no céu da Bahia de Todos-os-Santos, que como se sabe é a porta do mundo. Desmedida, nela cabem reunidas as demais qualidades do Brasil. Quanto à beleza, não há comparação que se possa fazer nem existe escritor capaz de descrevê-la.
Das glórias do time de Castor de Andrade, manda a prudência não falar, é recomendável guardar silêncio, a fim de evitar despeito e dor de cotovelo: sua fama está na boca dos marítimos, dos operários, nas canções dos torcedores, nos lances e relatos dos jogadores. Das glórias do Bahia, nos idos deste ano, aqui não se fará praça nem se cantarão loas para a celebração: a modéstia é apanágio da grandeza.
Sobre o time que se sagraria campeão às vésperas do Carnaval, muito mais se poderia dizer não fossem a modéstia e a prudência, pertinente ao ocorrido na travessia. Para seu cais de histórias e canções navega o Viajante sem Porto; leva de passageiros um padre, um escritor, uma freira, um contraventor e a imagem de Nossa Senhora Aparecida, que deixou seu altar singelo em Moça Bonita para figurar na Exposição de Arte Religiosa na capital baiana. Em surdina, a voz de Maria Clara a evocar Iansã, no mergulho dos peixes, no voo das andorinhas-do-mar.
No som majestoso do búzio, destacava-se um marulho triunfal, que boa-nova a santa anuncia à cidade e ao povo?
Na doçura de um fim de tarde, na opulência do crepúsculo, as águas e os peixes depuseram o saveiro com o andor e a formosura da santa no porto da chegada. O Viajante sem Porto se imobiliza, o sol explode no céu, no céu vespertino da Bahia, em todas as nuances do vermelho, do rosa ao escarlate.
Padre Abelardo ajuda a freira a pôr-se de pé, respiram os dois aliviados, desembarcavam cada um com sua pressa. Velaram pela santa durante a travessia, já não eram necessários pois nas proximidades da rampa via-se a Kombi do museu, à espera.
Para receber a imagem, o diretor escolhera um jovem etnólogo, auxiliar de confiança. Ele mesmo não pudera ir, naquele momento concedia uma entrevista coletiva, para dar maiores detalhes referentes à exposição e vernissage: presentes jornalistas da capital, importantes figuras do Sul do país e um certo Evaristo de Macedo. Quando o saveiro chegou à rampa do Mercado, o diretor começava a discorrer sobre a secular imagem de Nossa Senhora Aparecida, obra capital da imaginária que dentro de alguns minutos ali estaria iluminando a sala, deslumbrando todos os presentes. O ar seráfico fazendo-se em alguns momentos pícaro e malicioso.
Antes que mestre Manuel e Maria Clara, terminada à amarração do saveiro, fossem cuidar do transporte da imagem, a santa saiu do andor, deu um passo adiante, ajeitou as pregas do manto e se mandou.
Num meneio de ancas, Nossa Senhora passou entre Castor e Jorge e para eles sorriu, sorriso afetuoso e cúmplice. Ao cruzar com o padre e a freira, fez um aceno gentil para a freira, piscou o olho para o padre. Colocou as mãos abertas no peito e disse: Eparrei!
Lá se foi a santa, subindo a rampa do Mercado, andando para os lados da Fonte Nova. Levava certa pressa, pois a noite se aproximava e já era chegada a hora do jogo.
Também Evaristo se inclinou ao vê-la, tocou o chão com os dedos, os levou à testa e repetiu: Eparrei! Nem ele próprio sabia se ali se encontrava por acaso ou por obra e graça dos encantados. Antes que as luzes se ascendessem nos refletores, Iansã sumiu no meio da torcida.