Por Victor Faria
Raras são as vezes que numa roda de amigos ou de pessoas conhecedoras do esporte, não surja a seguinte pergunta. Teria morrido para o futebol o pirotécnico Breno?
A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham que estou apto para o jogo, outros, mais supersticiosos, acreditam que minha situação pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo a quem andam chamando de Breno não passa de um ex-jogador em atividade, envolvido por um pobre invólucro humano. Ainda há os que afirmam de maneira categórica o meu fim e não aceitam o cidadão como sendo Breno, o atleta pirotécnico, mais alguém muito parecido com o dito cujo.
Uma coisa ninguém discute: se Breno morreu para o futebol, seu corpo não fora enterrado.
A única pessoa que poderia dar informações corretas sobre o assunto sou eu. Porém, estou impedido de fazê-lo porque alguns companheiros de profissão ainda fogem de mim, tão logo me avistam em campo. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e mal conseguem articular uma jogada.
Em verdade, me ausentei dos gramados, o que vem de encontro à versão dos que creem no meu fim. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente.
Sem o futebol jamais quis viver. Jogar, cansar bem os músculos, correr pelos estádios cheios de gente, autênticos torcedores.
A tarde estava clara. Vagarosamente as nuvens, filamentos brancos, não tardariam a cobrir o céu. Caminhava pelo campo do Estádio da Ressacada, perto da entrada da área adversária. O marcador adversário escorregara e ali, perto do gol, havia somente sombra e silêncio. O passe não viera de longe e quando a bola chegou aos meus pés não enxergara mais nada. Simplesmente porque naquele instante o branco do céu desceria até a terra.
Os moços que vinham do banco deram gritos histéricos e não se demoraram a extravasar. Os rapazes falavam alto, curaram-se de qualquer desconfiança e logo se puseram a discutir qual seria meu destino a partir daquele lance.
Do lado adversário havia silêncio, sombras e silêncio, porque os jogadores não podiam acreditar em tal feito. Discutiam sobre a falha na marcação, mas dosavam as gírias e reclamações.
O ambiente da torcida também repousava no mesmo espanto e silêncio do campo. Não protestavam contra o ocorrido, apenas aguardavam o reinício da partida.
A ideia inicial, logo rejeitada, consistia em paralisar o jogo ou encerrá-lo com a premissa de um feito inédito de superação na vida de um jogador profissional. Mas havia o inconveniente de todo um segundo tempo a ser disputado e um campeonato sujeito às regras das confederações e direitos televisivos.
Um dos árbitros – sim, há diversos deles em campo = se impressionara com o feito, mas logo se ocupara de sua função e propôs que retomassem a partida. Meus companheiros não deram a importância necessária e se prolongaram na comemoração, o que talvez tivesse se refletido no resultado final, mas sendo isso o menos importante.
O juiz notou a pouca atenção dada pelos jogadores e pôs-se a apitar, mesmo que encabulado, para que todos retornassem ao centro do gramado. Não pude evitar minha imediata simpatia por ele, afinal o jogo é mais importante que um determinado momento de euforia e glória.
Policiais que anteriormente decidiram por meu futuro. Consideraram que me lançar ao precipício da solidão, um fundo precipício, seria a resolução mais adequada ao caso. Lógica cabível aos oficiais, sempre ávidos em achar o cárcere como solução imediata dos problemas.
Não, eles não podiam roubar de mim ou fazer se esconder essa vontade de retornar aos campos de futebol.
Sempre tive confiança na minha faculdade de compreender os planos táticos, os nossos e os adversários. Não sei se pela força da lógica ou se por um dom natural, a verdade é que, em vida, eu vencia qualquer disputa dependente de improvisação segura e irretorquível.
Meu afastamento não extinguira essa faculdade. Após alguns embates, nos quais expus com clareza minhas qualidades, os que apostavam em minha derrocada ficaram indecisos, sem encontrar uma resposta que atendessem tal procedimento. Para tornar mais confusa a situação, sentiam a impossibilidade de dar mérito a um defunto que não perdera nenhum dos predicados geralmente atribuídos aos vivos.
Havia certa relutância em acreditar na reabilitação de um companheiro. Concordavam todos (companheiros de profissão, comissão técnicas, especialistas esportivos, psicólogos e torcedores) que ele fora fraco e não soubera enfrentar com dignidade a situação. Portanto era pouco razoável que se perdesse tempo fazendo considerações sentimentais acerca de seu futuro. Havia muito ainda que se provar.
Nos anos anteriores, quando alguém me perguntava onde eu desejava ficar, logo respondia e insistia que meu lugar era nos campos. Respondiam ser impossível até que eu pagasse a sentença de meus atos. Repeti diversas vezes a palavra gol. Quem sabe nem chegasse a repeti-la, mas somente movesse os lábios, procurando ligar as palavras às sensações de meu delírio policrômico.
Por muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo exterior e os meus olhos, que não se acomodavam à paisagem estendida em minha frente. Havia ainda o medo que sentia, desde aquela noite, quando constatei que a morte penetrara meu corpo.
Não fosse o ceticismo dos homens, recusando-se a aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambição de construir novamente minha carreira.
Haveria de lutar contra o desatino que, às vezes, se tornava senhor dos meus atos e obrigava-me a recordar, o desenlace de minhas antigas decisões, todo o mistério que cercava meu afastamento.
Fiz várias tentativas para estabelecer contato com meus antigos companheiros e o resultado, à época, fora desencorajador. Eles eram a certeza do quão real fora meu fim.
No passar dos meses, tornou-se menos intenso o meu sofrimento e menor a minha frustração ante a dificuldade de convencer os colegas que o Breno que corre pelos campos é o mesmo jogador de outros tempos, com a diferença de que aquele era promissor e este não mais.
Só um pensamento me oprime: quais acontecimentos o destino reservará a um jogador dado como morto se os vivos respiram uma vida breve e agonizante? E a minha angústia cresce ao sentir que a minha capacidade de jogar é bem superior a dos seres que por mim passam ainda assustados.
Amanhã o dia parecerá mais claro, o sol brilhará como nunca brilhou. Nessa hora os homens compreenderão que, mesmo à margem da sociedade, ainda vivo, porque minha existência se transmudou em cores e o grito da torcida invade o campo para o exclusivo deleite dos meus ouvidos.