Por Marcelo Mendez
Felizes são os meninos que tem a chance de trocar umas idéias com seus ídolos. Plenos, são afortunados que estabelecem uma proximidade com aqueles que tantas alegrias lhes deram.
Assim é minha parada com César Sampaio. Grande César…
Com a camisa 5 do meu Palmeiras, César Sampaio beirou as raias da imortalidade em campo. Enquanto jogou pelo Palmeiras em sua fase áurea nos anos 90, Sampaio jamais olhou para ver a cor da grama. Cabeça, erguida, pose imperial de uma realeza que dispensa a frescura das coroas para ser imortal de chuteiras pretas.
Ele era o capitão do time que dediquei ao quarto capítulo desta série. O chamei para contar comigo sobre aquela noite fria do final do verão, em que eu estava na arquibancada e ele em campo, escorremos aqui, odes e sonhos.
09 de Março de 1994
“Sabíamos bem do Boca, lógico que não como hoje, quando temos milhares de informações e uma equipe só trabalhando para isso. Mas o Palmeiras sabia como o Boca jogava…”
A coisa na verdade começou algumas horas antes daquela noite mágica de março…
Durante o dia, encontrei tempo para ouvir o programa de esportes na Rádio Globo comandado pelo grande Osmar Santos e um dos comentaristas chamava atenção.
“Olha, veja bem; o Boca é um time matreiro e é treinado pelo Menotti. Isso é sempre perigoso”
Cesar Luis Menotti…
De pivete me lembro daquele homem magro, elegantíssimo, impecavelmente bem vestido à beira das canchas argentinas durante o Mundial de 1978. Munido de seu cigarro sem filtro, El Flaco comandava suas equipes, sempre caracterizadas pela leveza e um gosto intrínseco pelo bom futebol., sem brucutus e cujos homens do meio-campo eram jogadores habilidosos. Não sabia muito daquele time do Boca, mas do jogo que eu vi um empate em 1 a 1 com o Veléz Sarsfield pelo mesmo grupo não me seduziu muito.
Começava com o ótimo goleiro Navarro Montoya, um bom jogador de nome Carranza, outro volante cheio de perna um tal de Mancuso – esse a gente viria a conhecer bem um ano depois – e na frente o ciscador do Martínez, nada que justificasse a marra com que o Boca havia chegado em São Paulo.
Parecia a corte imperial da rainha Vitoria no século XIX. Rapaz, mas que frescurada da gota!
Passeando pelo hall do Hotel Transamérica, os jogadores xeneizes se achavam os Rolling Stones andando com um nariz empinado à la Mary Poppins. Muito que a contra gosto, do alto de sua grandeza, Menotti topou dar uma entrevista para a Rede Bandeirantes e caprichou no portunhol selvagem para dizer que o Boca jogaria em cima do Palmeiras para ganhar o jogo e que futebol era muito simples:
“Mi equipo joga assim… Yo Toco e me Voy”
Pois é, o sujeito vem enfrentar o atual campeão paulista e brasileiro, como se esse, fosse um time de várzea do “Desafio ao Galo”. Tinha logo que começar o jogo para gente ganhar deles, pensava eu na arquibancada do velho Palestra.
E começou.
Naquela noite o Palmeiras veio para campo com desfalques consideráveis. Não jogaria Freddy Rincón, machucado. Não teria Edmundo, envolto em uma de suas suspensões. A defesa era formada por Sérgio, Claudio, Antonio Carlos, Cleber e Roberto Carlos.O meio campo alinhou com Amaral, César Sampaio, Mazinho e Zinho. Na frente, Edilson e Evair. Era um timaço o nosso!
O Verdão levou 15 minutos para marcar o primeiro gol com Cleber, empurrando para as redes após um bate rebate na área. A partir daí, o Boca com o seu tal de “Toco e vou” não via a cor da bola. Pouco passava do meio de campo, não criava nada e quando o primeiro tempo terminou em 1 a 0, poderia até comemorar.
Afinal de contas, tinha lá no banco o “hómi” de certo que criaria uma solução mágica. Tá, criou sim…
A Linha Burra
“Nosso time era muito leve e muito veloz. Contávamos com ótimos jogadores, todos muito inteligentes e então, quando olhamos para o campo e percebemos que o Boca tentaria subir a marcação, imediatamente já sabíamos o que fazer. Surgiu muito espaço em campo e daí, ficou muito bom para jogarmos”
Tinha nos bolsos uns comprimidos de algum barato sintético, mas o dia não era para o surto. Não, a hora era pra ficar consciente do que rolava. Fiquei no intervalo a pensar em coisas da vida e no recém instaurado Plano Real, a única coisa que eu queria naquela noite era meu time ganhando o jogo.
Ávido em saber qual seria solução mágica do Menotti, fiquei de cara quando vi seu time em campo na volta do intervalo.
“Cara, ele vai fazer linha de impedimento?” Puxou conversa comigo um companheiro alviverde ao meu lado na arquibancada.
Contra o melhor time do Brasil, Menotti decidiu que adiantaria sua linha defensiva para tentar diminuir o campo de jogo do Palmeiras. Uma benção para um time que tinha jogadores inteligentíssimos como César Sampaio, Evair, Zinho e ele, o dono da noite: Mazinho!
“Foi um dos grandes parceiros que tive. Um cara correto, dedicado, altamente técnico, trabalhava bem com as duas pernas, onde caía ele resolvia. Bom passe, inteligente, naquela noite ele deixou de ser coadjuvante. Mazinho protagonizou, brilhou”
César Sampaio tem razão. Os garotos da “geração Playstation” não fazem ideia do quanto que esse camisa 8 jogou de bola na vida. Iomar do Nascimento é muito mais do que apenas o pai do Thiago Alcântara do Bayern e do Rafinha do Barça.
Antigo lateral direito, quando começou a atuar no meio-campo, Mazinho passou a ser um dos melhores meias que já passaram pelos campos nossos aqui. Inteligente, habilidoso, passe preciso, altamente técnico, foi um Grande. Na época, estava cotado para ir a Copa do Mundo que aconteceria em junho daquele ano – o que de fato aconteceu, ganhando o posto de titular ao longo da campanha do tetracampeonato mundial.
Com a ausência de Rincón, o então técnico Vanderlei Luxemburgo decidiu colocá-lo como meia, um pouco mais a frente. Na prática seria o camisa 10 e caberia a ele armar o time e assim o fez lindamente…
Posicionando-se um pouco mais atrás, Mazinho observou que o Boca pouco atacava. Dessa forma, começou a abrir o jogo com os laterais Claudio e Roberto Carlos. A todo instante, vindo de trás, os dois estouravam dentro da área do Boca. Foi dessa forma que roubou a bola de Mac Allister para lançar Evair na esquerda. O camisa 9 esperou a passagem de Roberto Carlos e com um toque de calcanhar e de encanto o serviu para um golaço!
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“Na verdade, o Boca veio a São Paulo para não perder. O empate jogando aqui para eles estaria ótimo e estavam na deles, fechadinhos e tudo mais. Com a desvantagem, eles desarmaram a marcação do meio campo; saiu Da Silva e colocaram um atacante (Acosta). Aí como se diz na gíria do futebol, foi um chocolate”
Mal tive tempo de comemorar e o “Capetinha” fez o terceiro. Em situação normal, eu estaria radiante, mas sei lá, foi estranho. Queria mais…
É tácito em nossa formação sudaca os caminhos da paixão inexorável pelo que amamos. No caso, amamos o futebol e naquela noite, como que por uma conjuração cósmica entre time, torcida e universo, ficou decidido que no Parque Antártica o Palmeiras não ia parar de jogar. Não se contentaria apenas com os dois pontos, não cessaria um milímetro que fosse na luta pelo encanto.
Era dia de lavar a alma, era a noite de passar com um caminhão em cima do Boca Juniors.
No nosso berro incansável, na nossa sede de poesia o Palmeiras seguiu. Mazinho seguiu botando os bosteros na roda. Em jogada épica, driblou a zaga toda da linha burra de Menotti e sofreu o pênalti para Evair fazer o quarto. Pouco depois, no rebote de sua tentativa por gol de cobertura em Mono Montoya, o camisa 9 ampliou para 5 a 0 e na sequência Jean Carlo fez o sexto tento, foi o êxtase.
Era uma seiszada inapelável, implacável em cima da empáfia do Boca e da classe de Flaco Menotti. Depois disso, quase esqueci do gol de honra, marcado por Martinez em cobrança de pênalti. Dane-se!
O placar de 6 a 1 lavou minha alma bêbada e me redimiu do torto que eu era. Foi meu nirvana na Pompéia.
Não, não vencemos aquela edição de La Copa. Passamos da primeira fase na terceira colocação, atrás de Vélez e Cruzeiro, e paramos nas oitavas-de-final contra o ótimo time do São Paulo, que dava os últimos suspiros da Era Telê, e pouco me importa isso. Sou um rapaz latino-americano que tem compromisso com a poesia e não com as “vitórias”.
Se bem, que naquela noite, no Parque Antártica, venci.