Nos Olhos do Intruso

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Por Victor Faria

Não lembro a primeira vez. Mas aqui e ali comecei a ouvir comentários: aquilo é o que interessa, é onde o jogo acontece, o futuro do futebol fugiu pra lá. E a torcida.

Advertências que repetiam a verdade mais simples, não há como negar. Hoje parecem ressoar a voz de um oráculo. Mas era uma verdade que demorei a rever, que entendi mal, que me apressei em traduzir totalmente errado, nos termos de euforia de um menino, ou até de um tolo.

Talvez eu pudesse ter ficado como estava, talvez o futuro ainda estivesse bem longe até hoje, se naquela noite eu não tivesse ido conhecer a nova Arena. Os jogadores desempenhavam diversas funções em campo e o resultado da partida quase não importava. O espetáculo consistia muito mais na velocidade e na execução das jogadas ensaiadas, nas metamorfoses dos atletas, dos erros e improvisos a gerar lances de gol.

Em pouco tempo eles trocariam de camisa, encarnariam outro tom, outra habilidade, e tudo com um vigor que só podia nascer de um tipo de jogador.

Ao fim da partida, algumas fileiras à minha frente, aconteceu. Quando as pessoas se levantaram apressadas, entrevi, no intervalo das cabeças, um homem parecido com alguém que eu conhecia. Talvez fosse a dança de tantos rostos a meu redor, mas o efeito era o de muitas feições distintas convergindo e se sobrepondo, todas iguais.

Uma desconfiança incômoda me obrigou a olhar melhor e então deparei com um sujeito igual a mim mesmo, apenas um pouco mais novo, bem apresentado. Sacudido por uma espécie de insulto, experimentei o temor de estar sendo substituído.

Com os olhos naquele homem, esqueci que deveria continuar andando. As pessoas atrás de mim, na minha fileira, me responderam com resmungos. Tentei me livrar com estupor, mas o máximo que consegui foi observar o homem da maneira mais discreta que podia. As fileiras escorriam todas na mesma direção, o público escoava ligeiro para o funil da saída e logo o perdi de vista.

Se uma coisa deriva sempre de outra, se todo fato espalha efeitos em todas as direções, por que não notar no que se seguiu uma continuação, um sistema? Podia parecer um caso bobo, uma dessas situações corriqueiras que nem paramos pra pensar. Em um intervalo de semanas, pelo menos três amigos me contataram pra dizer que haviam me visto novamente na Arena, em setores que eu não conhecia, fazendo coisas que eu absolutamente não tinha o hábito de fazer, em dias que eu estava ocupado noutra parte da cidade.

Na primeira vez, juro, tentei negar. Depois, diante da alegre certeza da pessoa, me resignei a ouvir em silêncio. A seguir, de uma maneira que mal percebi, passei pouco a pouco a acreditar que era eu mesmo que ia àqueles lugares e punha em prática aquelas ações. Eu até sorria e pelo menos uma vez cheguei a inventar explicações adicionais, coerentes, apenas para ver se eram bem aceitas pelo meu ouvinte.

Tempos depois, eu vinha distraído pela rua. Quando dei por mim, uma pessoa que não pude reconhecer me dirigia palavras apressadas. Mencionou de passagem um nome estranho para mim como se fosse um amigo comum. Depois pediu desculpas pela pressa, se despediu e foi embora dizendo que me veria em breve. Algo desse tipo se repetiu ainda, em duas ou três situações que outras pessoas poderiam interpretar como encontros fortuitos com lunáticos, do tipo que prolifera nas ruas, eu sei.

Aos poucos, as histórias que esses estranhos atribuíam a mim me pareciam familiares. As pessoas que eles mencionavam chegavam a se tornar íntimas pra mim, com seus nomes e suas ambições cotidianas. Tudo ia se incorporando à minha memória, meus hábitos. O meu passado se expandia com um novo grupo de torcedores e fatos, ao mesmo tempo em que meu presente também se ampliava, numa espécie de movimento comportamental direcionado.

Certa manhã o telefone me acordou. A voz do outro lado avisou que uma determinada pessoa não poderia ir ao jogo e que, automaticamente, havia repassado para mim o seu ingresso. Citou um nome, que não reconheci e nem me dei ao trabalho de memorizar. Mas anotei a hora e o lugar determinado.

Cheguei em cima da hora, um pouco atrasado até. Achei que por isso ninguém se aproximou para me cumprimentar. Raciocinei que temiam perturbar a cerimônia do minuto de silêncio. Somente um segundo antes do início da partida é que distingui as feições do homenageado no telão do estádio. Foi rápido. A imagem se apagou dando lugar às propagandas sobre a vantagem de ser sócio-torcedor. Mas creio ter reconhecido o homem que eu, nem sei quanto tempo antes, vira naquela mesma arquibancada.

Antes que eu me refizesse da surpresa, a partida já se encerrara e todos haviam ido embora sem sequer se despedir de mim. Os modos haviam mudado. Desci as escadas em direção à lanchonete no saguão do estádio. Pedi uma cerveja, na esperança de que o garçom conversasse um minuto comigo, sobre o time, a campanha, o tempo, que fosse. Mas ele logo virou a cara para o meu sorriso, como se estivesse diante de um estranho, um intrometido.

A rigor, aqui e ali, eu descobria motivos para pensar que me consideravam um importuno. Em lugares onde eu esperava ser recebido como um irmão, me rechaçavam com a frieza e a hostilidade educada que só se descarrega sobre os intrusos. Mesmo nos ambientes que, antes eram para mim perfeitamente familiares – meu trabalho, a vizinhança, amigos, colegas – eu me via tratado como alguém indesejável. Foi nessa altura que resolvi me mudar para uma outra cidade, a cidade de que eu ouvia falar anos antes com tanta simpatia.

Acho que poderia viver ali por bastante tempo, sem maiores problemas. Fui para a rua. Forcei minhas pernas a caminhar e vi a Arena fugindo para trás sob os meus passos. Pude notar o reflexo de um homem que me observava. Ele me fitava com insistência.

Por instinto, desviei o rosto pois o homem me pareceu agitado. Fingi que não o via e estou certo que o deixei convencido disso. Mas a vitrine de uma loja logo em frente e seus espelhos permitiam olhares diagonais. Por esse ângulo, pude notar que o sujeito era extraordinariamente parecido comigo. Apenas um pouco mais velho, relaxado.

Sei agora porque devo estar nessa cidade, o ambiente, um novo clube, sua torcida. O olhar admirado do homem fora uma espécie de boas-vindas e também uma despedida para mim. Até que chegue a minha vez, esse sujeito ainda vai ouvir falar muito de mim.

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Leitura recomendada: “Allianz Parque: perdemos o estádio, não a cidade

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