por Lucas Borges
“Colo Colo sólo tiene US$ 1,5 millones (cerca de R$ 6 milhões) para tres refuerzos”, publicou no dia 29 de dezembro de 2015 a versão chilena do diário esportivo AS, sobre o projeto orçamentário do atual e maior campeão de futebol do Chile para 2016. Meses antes, o Chilevisión decretava o elenco do “Cacique” como o mais caro do país ao custo de 380 milhões de pesos mensais, pouco mais de R$ 2 milhões por mês.
Também em dezembro passado, a Liga MX, responsável por organizar o Campeonato Mexicano, anunciava que para o início de 2016, haviam sido realizadas pelas equipes da primeira divisão local 51 transferências em um montante total de 390,5 milhões de pesos mexicanos, cerca de R$ 90 milhões. Menos do que os irreais US$ 31 milhões desembolsados somente pelo Tigres (um dos muitos times mexicanos pertencentes a multimilionários) em Gignac, Aquino, Uche e Jürgen Damm exclusivamente para a fase semifinal da Copa Libertadores (o desbunde não surtiu efeito e o Tigres acabou derrotado pelo bem mais modesto River Plate na decisão).
Cifras ainda são artigo raro nas manchetes da mídia esportiva latino-americana, bem menos influenciada pela tendência europeia à monetização da cobertura jornalística do que a imprensa brasileira. Mas o site alemão Transfermarkt dá mais elementos para a comparação entre as agremiações do Brasil e seus vizinhos.
Segundo a página eletrônica, 400 mil euros (menos de R$ 1,5 milhões pelo câmbio atual) é a cifra correspondente à compra mais cara já realizada por um clube de futebol da Bolívia em toda história. Em 2007, o The Strongest pagou esta quantia ao Cerro Porteño pelo meio campista paraguaio naturalizado boliviano Pablo Escobar.
O Atlético Nacional, mais tradicional representante da Colômbia na próxima Copa Libertadores, tem elenco avaliado em 12,4 milhões de euros, informa ainda o Transfermarkt, sendo que nenhum dos seus atletas custa mais do que um milhão de euros – um dos mais caros é o meia Macnelly Torres, antigo desejo de times brasileiros, que valeria exatamente um milhão de euros. Em um número semelhante – 12,60 milhões de euros – é estimado cada um dos grupos dos gigantes uruguaios Nacional, do zagueiro Diego Polenta, cotado em 1,75 milhão de euros, e Peñarol, do jovem meio campista Nahitan Nández, avaliado em 1,5 milhão de euros.
Concorrência desleal
Eis alguns dos tópicos das últimas semanas na agenda financeira dos clubes brasileiros que disputarão a próxima Libertadores: Paulo Nobre, presidente do Palmeiras, cogitava elevar em mais de 10% a folha salarial do Alviverde, já estimada em R$ 7 milhões por mês em 2015. Ao contratar oito novos atletas neste ano – depois de ter adquirido outros 25 na temporada anterior – o “capo di tutti i capi” do Palestra Itália provavelmente cumpriu sua meta.
Assolado por um maremoto chinês que levou quase todo seu meio-campo, o Corinthians cogitava se recompor pagando ao Al-Nassr, da Arábia Saudita, R$ 16 milhões por Marquinhos Gabriel, ex-Santos. Depois de passar quase dois anos emprestado ao São Paulo – período durante o qual o Alvinegro arcou com metade de seu ordenado –, Alexandre Pato poderia assentar de vez no Parque São Jorge recebendo R$ 800 mil.
O Atlético-MG estudava aumentar em sete vezes a verba para contratações neste ano após acumular R$ 253 milhões em 2015 (maior entrada de dinheiro da história do Galo), dispondo R$ 16 milhões para o técnico uruguaio Javier Aguirre. Parte da verba foi usada para levar o meia equatoriano Juan Cazares, pertencente ao Independiente del Valle e até 2015, atleta do Banfield. Mais discreto, o Grêmio pagou R$ 7 milhões para contar em definitivo com o volante Maicon, do também moderado São Paulo, que concentrou reforços na volta do experiente zagueiro Diego Lugano, no Cerro Porteño.
Os números, registrados em tempos de crise da economia brasileira, ilustram o abismo financeiro entre a América Espanhola e o “Mais grande do mundo”, como os vizinhos hispânicos costumam se referir em tom irônico ao único país de língua portuguesa do continente.
US$ 2,375 trilhões era o valor do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2014, segundo o Banco Mundial, o sétimo maior PIB do mundo. Bolívia e Paraguai, os países mais pobres da América do Sul, por exemplo, beiram os US$ 30 bilhões de PIB. Não é preciso pinçar os extremos para evidenciar esta diferença. O segundo maior PIB da América Latina, do México, é de US$ 1,2 trilhão.
Nem mesmo a Argentina, grande concorrente regional brasileira na bola e nos negócios, com o terceiro maior PIB continental (US$ 579,2 bilhões), faz frente. Ainda que possua em seus quadros a megaestrela Carlitos Tevez, o Boca Juniors, por exemplo, tem elenco inferior a oito times do futebol brasileiro. Avaliado em 60,43 milhões de euros, novamente segundo o Transfermarkt, o elenco xeneize superaria apenas um dos cinco participantes brasileiros na Libertadores, o Grêmio. O escrete do Corinthians (antes da devassa à qual foi submetido) valeria 96,1 milhões de euros, o do Palmeiras, 81,1 milhões, o do Atlético-MG, 66,75 milhões e o do São Paulo, 60,7 milhões.
Pelo título brasileiro de 2015, R$ 10 milhões foram pagos ao Corinthians pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol) como premiação. “Na Argentina não há orçamento”, explica o jornalista portenho Diego Huerta, dos sites Cultura Redonda e Martí Perarnau. “Com a mudança dos direitos de transmissão do futebol do grupo Clarín para o governo em 2009, isso acabou. O Boca, ao ser campeão neste ano, teve prêmios de seus patrocinadores, mas não da AFA (Associação Argentina de Futebol) e da TV. Os direitos de transmissão de televisão aumentaram muito com a participação estatal, mas esse dinheiro antes passa pela AFA, que decide o quanto passa aos clubes.”
Quando a moeda não ganha jogo
“Tamanha fortuna para que nos deixassem desfrutar das últimas duas copas”, bradaria em tom de broma um torcedor albiceleste sobre o destino das duas Libertadores passadas. De fato, a despeito do cenário descrito acima, San Lorenzo e River Plate venceram os mais recentes troféus, aumentando para sete (24 a 17) a diferença entre argentinos e brasileiros no palmarés do torneio.
Sem deixar margem para poréns, cuervos e millonarios passaram por brasucas em seus caminhos. O San Lorenzo eliminou Grêmio e Cruzeiro no mata-mata antes de encontrar Bolívar e Nacional-PAR e finalmente se sagrar campeão. O River despachou o mesmo Cruzeiro de forma acachapante nas quartas de final, aplicando 3 a 0 na Raposa em pleno Mineirão depois de ter perdido por 1 a 0 no Monumental de Nuñez. “Vendo esse jogo, muitos de nós nos perguntávamos se esse Cruzeiro poderia estar entre as cinco primeiras equipes da Argentina”, conta Diego Huerta sobre a avaliação dele e de seus conterrâneos dos então bicampeões brasileiros.
Ao Norte do Prata, um aficionado verde-amarelo alegaria que a Libertadores passou a ser prioridade por aqui a partir dos anos 1990. De 1992 para cá, somam-se 12 conquistas brasileiras contra nove argentinas – mais uma paraguaia, com o tradicionalíssimo Olimpia, uma colombiana, com o ultradefensivo Once Caldas, e uma equatoriana, por meio da estruturada LDU.
Mauro Cezar Pereira, comentarista dos canais ESPN, rebate: “Tem que olhar aí não só a questão dos títulos conquistados. Nos últimos anos, a Argentina andou quebrada. O país estava falido, viveu situação econômica caótica (chegou a trocar quatro vezes de presidente em menos de quatro anos). Nem se compara com as turbulências vividas no Brasil hoje. É até assustador pensar como a folha salarial de San Lorenzo e River está longe da dos brasileiros. A exceção talvez seja o Boca, com grande influência política do Macri [Mauricio, ex-presidente xeneize e recém-nomeado presidente da Argentina], que utilizou muito o futebol. Eventualmente aparece um time da Colômbia, mas ai é coisa de mecenas, como já teve até dinheiro do narcotráfico.”
O jornalista tem na ponta da língua uma série de motivos para a ineficiência do dinheiro brasileiro. Deficiência tática, falta de informação, empáfia, desatualização dos treinadores locais. À distância, Huertas concorda. “No econômico [o Brasil] é superior, mas no tático e técnico podemos discutir. E no plano dos treinadores estou seguro de que é muito inferior ao futebol argentino, muito inferior. Os planteis brasileiros podem ser ricos, mas essa diferença pode ser reduzida por um bom trabalho tático, um bom treinamento e formação de equipes muito sérias.”
Não por acaso, São Paulo (que trocou o colombiano Juan Carlos Osorio pelo argentino Edgardo Bauza) e Atlético-MG (do uruguaio Diego Aguirre, que antes já havia passado pelo Internacional) serão comandados por estrangeiros na próxima Copa Libertadores. O Palmeiras, hoje de Marcelo Oliveira, recentemente esteve nas mãos do argentino Ricardo Gareca e o Corinthians de Tite foi gerido pela lenda Daniel Passarela em 2005, sucedendo no cargo o mesmo Tite, então em sua primeira passagem pelo Parque São Jorge – o gaúcho de Caxias, aliás, é uma das raras referências de técnico moderno no país. O intercâmbio de maestros não tem mão dupla.
Huertas vai além no diagnóstico das deficiências do vizinho. Nem tudo que reluz é taça ou ouro. “Os clubes argentinos hoje aceitam que o futebol brasileiro é o mais forte da região e que nessa competição vai ganhar sempre. Quando fazem uma proposta por um jogador jovem, não vão tentar segurá-lo negociando um contrato melhor. Mancuello (ex-Independiente) foi para o Flamengo, Centurión (ex-Racing) foi para o São Paulo, Allione (ex-Vélez Sarsfield) foi para o Palmeiras”, diz ele, para quem a diferença financeira começou a se aprofundar com a chegada dos anos 2000, tendo como marco a compra dos cobiçados Javier Mascherano e Carlitos Tevez pelo Corinthians e sua parceira MSI, em 2005.
“Ao mesmo tempo, nos perguntamos se os brasileiros efetivamente compram os melhores jogadores quando chegam à Argentina. Muitos atletas daqui partem para centros como Portugal, França ou mesmo clubes pequenos da Espanha e da Itália e poderiam passar pelo Brasil se os brasileiros tivessem a óptica de analisar a fundo o futebol argentino. Todos os anos, dez ou 15 jogadores explodem e aparecem. E no início da carreira eles custam menos. Mas o Brasil vira as costas e não aprofunda essa diferença econômica.”
Para Mauro Cezar, essa diferença tampouco se converterá em amplo favoritismo na próxima Libertadores. “O Palmeiras gasta muito em quantidade e talvez fosse mais interessante gastar em qualidade. O Atlético tem feito muitas loucuras financeiras nos últimos anos e a conta vem mais tarde, como já veio para o Corinthians.”
Drama oriental
Mexicanos não se decidem se norte ou sul-americanos, dividem-se entre Concacaf e Conmebol e não passam do vice na Libertadores (já são três, com Cruz Azul, em 2001, Chivas, 2010, e Tigres, 2015). Paraguaios desafiam a limitação orçamentária com bravura guarani, mas não superam raros surtos de sucesso. Colombianos e equatorianos logram glórias ainda mais esparsas e chilenos não traduzem no campo das copas o êxito recente de sua seleção.
E além de todos esses, uma terceira força costumava fazer frente a argentinos e brasileiros até os anos 1990, quando a chama simplesmente minguou. O Uruguai, resumido nos místicos Nacional e Peñarol, esteve presente em nada menos que 16 de 28 decisões de Libertadores de 1960, quando a competição foi criada, até 1988, quando o Nacional venceu a última de suas três taças continentais – foi vice em outras três oportunidades. Dali em diante, os orientais só voltariam a brigar pelo caneco em 2011. Neste ano, o Peñarol (do técnico Diego Aguirre) acumulou seu quinto vice-campeonato e desperdiçou o hexa continental perdendo para o Santos de Neymar.
“É um pais pequeno, que depende de vender seus jogadores jovens para sobreviver”, afirma Mauro Cezar Pereira. “Isso acontece hoje na Holanda, que consegue montar uma seleção terceira colocada de Copa do Mundo [no Brasil-2014], mas que tem clubes figurantes. É um país muito desenvolvido, cuja população vive extremamente bem, mas que no futebol não consegue acompanhar o pique desses números malucos da Europa. O Uruguai [terceiro colocado da Copa do Mundo anterior, na África do Sul-2010], mal comparando, vive uma situação parecida.”
O contraste realmente sugere uma disputa tão desigual quanto a proporcionada por magnatas norte-americanos, árabes ou asiáticos na Europa. Atualmente, os participantes da primeira divisão do Uruguai recebem US$ 29 mil pelos direitos de transmissão de televisão dos seus jogos. No Brasil, em 2016, Corinthians e Flamengo devem ganhar R$ 170 milhões cada um pelos direitos de TV da Série A.
Mas o jornalista uruguaio Andrés Reyes apresenta uma visão mais particular da derrocada celeste no estrangeiro. “Creio que o fator econômico incida, mas que não seja decisivo. Atualmente, os grandes do Uruguai, Nacional e Peñarol, pagam salários importantes e manejam orçamentos que se não se aproximam dos principais clubes da Argentina e do Brasil, são semelhantes ou até maiores que os de equipes como Olimpia, Nacional-PAR, Once Caldas e todos os demais ‘não poderosos’ que definiram a Libertadores nos últimos anos. Inclusive o Defensor Sporting [também uruguaio], que teve mais participações que Nacional e Peñarol com orçamentos muito mais baixos.”
Segundo Reyes, a Libertadores deixou de ser uma prioridade na capital Montevidéu a partir do momento em que a rivalidade entre Nacional e Peñarol ganhou proporções obsessivas e transformou o campeonato nacional em uma disputa pessoal. “Quando em 1997 o Peñarol consegue ser campeão durante cinco anos seguidos, o campeonato passou a ser uma luta entre ambos pelo título ou até para evitar que o rival seja campeão.”
“Chegamos ao extremo de o Nacional, na Libertadores de 2014, jogar com reservas a partir do terceiro jogo da fase de grupos, priorizando o torneio local. Até o final dos anos 1980, era o contrário. Nesse processo, as redes sociais exerceram grande influência: tanto Nacional como Peñarol têm uma pressão constante para ganhar todos os campeonatos nacionais e os clássicos e se perdem, o povo pressiona para que o técnico seja demitido. Por isso as equipes menores, como Defensor e River [do Uruguai], em geral têm campanhas melhores na Libertadores. O Peñarol chegou à final em 2011 sem planejamento, quase por casualidade. Quando os grandes do Uruguai se convencerem de que a glória autêntica se obtém fora das fronteiras e pensarem no torneio nacional como um passo prévio, o problema começará a ser revertido. Por enquanto, estamos longe.”