por Victor Faria
As minhas primeiras relações com a atual Copa Libertadores da América foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devo ter quatro ou cinco jogos no ano, por aí, e já figuro na qualidade de vítima. Certamente já me haviam feito representar tal papel, mas ninguém me dera a entender que seria tão cruel. Bateram-me porque podiam bater-me, e isto era natural.
Os golpes que recebi me pareciam a disputa de um cinturão, puramente físicos, exacerbavam psicologicamente a dor. Lembrei-me que certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família. Minha avó condenou o procedimento da filha. Irritada, feria-me à toa. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o instrumento, o nó. Não fosse ele, a flagelação me haveria causado menos estrago. E estaria esquecida. O soco de Velasco, que veio anos depois, avivou a memória.
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Roger Machado estava em frente ao banco de reservas, parado na linha lateral. Tudo é nebuloso. Arquibancadas extraordinariamente lotadas, rede infinita de torcedores, os colegas de time longe, e o técnico a observar, levantando-se de mau humor, batendo com os pés no chão, a cara enferrujada.
Naturalmente lembro com dificuldade de sua feição, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando exigências. Sei que estava zangado, e o golpe me trouxera uma covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a outros atletas, grandes jogadores, que não levaram pancadas. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu treinador encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
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Incapaz de revide ou defesa, fui encolher-me num canto do campo, pra lá das linhas adversárias. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me do gramado. Devo ter pensado nisso, imóvel, dentro das quatro linhas. Só queria que os outros jogadores surgissem de repente, me livrassem daquele perigo.
Ninguém veio, o árbitro da partida descobriu-me acocorado e sem fôlego, e arrancou do bolso abruptamente um cartão, ocasionando a expulsão do adversário. Sopapos trocados valeriam tal qual um íntimo cinturão? Eu não saberia, difícil de explicar. Atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais de Velasco, coléricos, atavam-me; os sons duros da arquibancada, vaias da torcida, ecoavam, desprovidos de significação.
Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros do treinador, a zanga terrível, a minha ternura infeliz. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.
Devia eu revidar? Pessoalmente numa disputa de cinturão? Impossível responder. Ainda que o juiz o tivesse expulsado, ele ainda permanecia em campo. Me achava apavorado. Situações deste gênero constituem os maiores danos de minha carreira, e as consequências certamente me acompanharão.
Os gritos da torcida mexicana me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de maneira semelhante.
Em campo não posso ouvir uma pessoa a falar mais alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a perna emperra, a vista escurece, uma cólera doída agita as coisas adormecidas cá dentro.
Um soco valeria minha honra? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.
A fúria louca dos torcedores ia aumentar. Conservar-me-ia ali parado, encolhido, movendo os pés frios, os passes trêmulos e despretensiosos. Se algum moleque da base ou outro jogador entrasse em campo, talvez as vaias se transferissem. Qualquer um seria inocente, mas não se tratava disso. Responsabilizando qualquer atleta, o técnico me esqueceria, deixar-me-ia esconder na beira do campo ou outro canto qualquer.
Aperto na garganta, o estádio a girar, o meu corpo a movimentar-se lento, torcedores de todos os lados enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a covardia medonha.
O ar rarefeito, e não percebi direito os movimentos de meu agressor. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio do campo, o soco fustigou-me o rosto. Uivos, alaridos inúteis. Já então eu deveria saber que rogos e adulações exasperavam-me como algoz. Nenhum socorro. Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez os socos não fossem tão fortes e deveria ter revidado seguindo as cartilhas de competições continentais. De nada valeria. Certamente minha esquiva, as tentativas de escapar do confronto, eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Movia-me em total desespero.
O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação do golpe: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, um grito rouco a mastigar uma interrogação incompreensível.
Antes do apito final, cansado, vi o treinador dirigir-se aos colegas de time, sentar-se e logo se levantar. Resmungou e ficou a zanzar agitado na área técnica. Tive a impressão de que ia falar-me, mas baixou a cabeça, a cara amarrada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram refúgio onde me abatia, aniquilado.
Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois de afastou.
E ali permaneci, miúdo, insignificante.
Foi esse o primeiro contato com a atual Copa Libertadores da América.