Doce infância
Era uma daquelas manhãs outonais em que o Sol e o céu azul estavam lá, reluzindo, não o bastante pra dispensar moletons e jaquetas. Com a promessa de mais uma ida ao Pacaembu, para ver o time em campo pela primeira vez em disputa internacional, este criança acordou com implacável febre, que ao menos valera falta na escola.
Mas a dor de cabeça e no corpo eram sérias, um peso jamais sentido anulando as forças. Foi necessário ir ao pronto socorro, tomar soro, ficar sob observação. Suspeita de meningite. Uma brutal injeção na medula, a maior agulha já vista na vida, cujo líquido extraído ajudaria no diagnóstico.
Um puta susto, mas tudo bem, alarme falso. Era só ir pra casa, tomar os remédios prescritos e esperar passar. Mas havia Marcelinho, Edmundo, Souza, Zé Elias, Ronaldo e um Pacaembu tomando conta de todos os pensamentos.
Muitas horas de súplicas, uma ou outra informação sonegada à mãe e, finalmente, vamos para o jogo, afinal, no ano seguinte seria transposta a faixa etária que era sinônimo de entrar gratuitamente no estádio municipal.
Havia também Leonardo, que completava um envolvente ataque, pouco lembrado pela sua curta duração em preto e branco. Ele que abriu o placar, completando jogada de ponta do Animal, em um dos seus 5 gols naquela campanha.
E o Corinthians aplicou 3 a 1 com grande facilidade, fazendo valer cada minuto daquela dor que ainda figura na memória celular desse corpo.
Uma pena não terem feito minuto de silêncio para o discreto goleador piauiense, falecido de forma tão incompreensível na semana.
Podem achar chatice de quem é crítico incansável do atual modelo de futebol e estádio preconizado para os grandes clubes brasileiros, sua nova cartilha de comportamento, que empastelam a cultura das arquibancadas dia após dia.
Mas parece um esquecimento “coerente” com os tempos em voga, no qual só se conhecem o sucesso, os títulos, casarões luxuosos, rankings de sócios, patrocinadores, cifras inéditas e os velhos mantras de time maloqueiro e sofredor não passam de slogans vomitados por departamento de marketing.
Vai ver, convém não lembrar muito desse Corinthians que perdia e traumatizava, da torcida que reagia insanamente às decepções, da vida mais simples e feliz no estádio alugado e um jeito menos “materialista” de amar o clube.
Maturidade agridoce
De volta ao presente, estávamos diante do início de mais uma campanha copeira, ainda sob o baque do mais puro ópio chinês e um time que não passa perto de criar grandes ilusões.
Mas seguimos, porque se na arena nosso modo de torcer é podado incessantemente, na televisão, com seus animadores de auditório e “show de imagens” que entopem a tela de closes e replays em câmera superlenta a qualquer banalidade, fica mais difícil ainda manter a devoção.
A expectativa já vinha de antes, com a assombrosa notícia do ataque ao presidente e um secretário dos Gaviões da Fiel, na saída de uma reunião com o Ministério Público e o promotor Paulo Castilho, autêntico sucessor do famoso príncipe da merenda, aquele que alavancou sua carreira política através da extinção da festa e da liberdade dos estádios paulistas.
Políticas de “segurança” comprovadamente fracassadas, após 20 anos de tentativas. Mas nada que impeça sua repetição. “Temos de ser mais europeus e norte-americanos”, disse recentemente o investigado presidente da Assembleia Legislativa.
Folga dizer que é impossível tratar do crime sem fazer ilações com possíveis retaliações do aparato estatal, do momento em que o político em questão (que tem entrado com ações judiciais para impedir jornalistas de citá-lo) virou alvo central, ao lado da Rede Globo, dos protestos dos torcedores organizados do Corinthians, que vão desde o preço dos ingressos à própria corrupção, inclusive a que devastou o futebol brasileiro nos últimos tempos e agora deixa um auto-anistiado da ditadura em seu posto máximo.
Só mesmo uma dose cavalar de dissimulação para focar exclusivamente nas rixas eternamente mal resolvidas entre as organizadas, o que de fato não pode ser descartado.
Dessa forma, o que veríamos em campo dependia um pouco do que se transmitiria de fora. E o agouro era ruim.
Em maio passado, véspera da semifinal do Campeonato Paulista, uma brutal chacina levou deste mundo 8 membros da Pavilhão Nove, em sua própria sede, num ritual claramente associado a grupos de extermínio, cujas ramificações dispensam comentários. Não à toa, exclui-se o massacre das lembranças midiáticas de casos de violência, enquanto mais uma vez as investigações parecem inexistir.
Naquela vez, uma torcida claramente de luto, por vezes sentada, não pôde exercer sua força tradicional e o Timão acabou eliminado nos pênaltis, após chegar a virar o marcador contra o grande rival.
Desta vez, talvez por ninguém ter morrido e a cautela ser estratégica, os Gaviões tentaram viver o jogo em bom astral e comandar as bancadas como de costume. Tarefa inglória já em condições normais, em tempos onde a torcida parece mais pulverizada do que nunca, carente do velho sentimento de irmandade que perpassava todos os setores e tipos presentes.
Ainda assim, era preciso mostrar força, e ela se viu através da reiteração dos protestos contra Globo, CBF, FPF, os preços e o intocável.
O jogo
Em meio ao turbilhão das emoções e memórias, a bola precisava rolar, sempre precisa. Fecha as feridas um pouco mais rápido.
E ao menos nesse âmbito o Corinthians de Tite mantém o hábito de jogar futebol avesso a surpresas e quebras de roteiro.
Um time metódico, peças que compensam a falta de brilho com a perfeita noção de onde e quando precisam estar.
Não existe aquele velho costume de dar tudo por um gol nos primeiros 15 minutos, em pressões de tirar o fôlego e a confiança do visitante. Por outro lado, muito raramente se vive o reverso da moeda, um pedaço de jogo marcado pelo domínio rival e a iminência do indesejável.
Mais uma vez, vimos um jogo de tabuleiro, regiamente seguido pelos colombianos, campeões sul-americanos, lembre-se, e bem treinados e disciplinados pelo argentino Gerardo Pelusso.
Chances contadas, de perigo apenas relativo de lado a lado, ninguém capaz de dar um passe ou drible que quebrassem o sistema oponente, de fazer alguém puxar o ar pro grito que já está na metade da garganta.
Mas a coletividade alvinegra se adaptou, até de bom grado, a essa vida com menos pulsações. Paira no ar uma sensação positiva de que é assim mesmo que vai dar certo, que daqui a pouco uma jogada fortuita e bem executada termina como vimos mais uma vez terminar, no gol do apagado Guilherme em cruzamento excelente de Rodriguinho.
E que depois os minutos passariam na mesma rotação, com toda a onisciência de quem já se acostumou a ganhar assim, sem brilho e naturalmente. Como passaram.
Não há quem discuta a queda técnica em relação ao hexa brasileiro, mas nem o aterrador êxodo é capaz de baixar totalmente a guarda de uma torcida que mantém a fé em seu pastor e seus poderes de transformar o jogo em ciência exata.
A razão e a fé de mãos dadas, eis a receita.