A Libertadores, em prata e osso, em minha casa

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“Se mira y no se toca” é a frase clássica das torcidas que chegam muito perto de levantar a Taça Libertadores da América, sem no entanto conseguir. Pois no meu caso a frase, por pelo menos uma noite, se inverteu. Carreguei, hospedei, protegi o objeto máximo da cobiça futebolística do continente, guardada dentro de um case preto reforçado por seis cadeados e vinte lacres. E eu juro que acordei naquele 22 de novembro de 2010 certo de que teria a segunda-feira mais banal possível.

Sento de manhã em minha nova mesa, sou contratado recente, um assistente de logística ainda sem moral pra dizer “não”. Entre as funções, receber times de futebol do exterior, bancar o simpático e ajudá-los em nome de um cliente em comum, chamado Conmebol. Naquela segunda, um e-mail pingou na caixa e pedia, por falta de alguém experiente disponível na equipe, uma tarefa inusitada: levar uma taça para Assunção, Paraguai, naquela noite mesmo. Nada mal.

Um funcionário da Conmebol me encontra e o acompanho até a Prataria Rebouças, onde a taça, que até então não sabia qual era, estava ganhando um trato, uma polida, um talento. Da Prataria a gente parte para a casa deste funcionário, que, pouco amistoso, me faz saber que estamos diante da Libertadores, e que tudo de ruim que acontecer com ela nas próximas horas é culpa minha. Um case do tamanho de uma geladeira com rodinhas. Dentro, a taça original. Quinta-feira, evento na Conmebol, ela é a convidada de honra. A Libertadores era um abacaxi em minha mão.

Dava aula à noite. Tinha mais trabalho a fazer. Não se anda por aí com algo tão valioso e pesado. A melhor opção foi chamar um táxi e deixá-la em casa, e não queiram saber o quão estranho é fechar a porta de casa com um troféu destes na sua sala. Três horas antes e nada disso passava pela cabeça. Lá estava eu, desejando ter olhos de raio-x, sentado no sofá, de frente para aquela que só se deixa tocar por quem sua sangue em seu nome. Uma top model visitou minha casa vestindo cinto de castidade.

Fingi normalidade o resto do dia. Avisei meu irmão para não tocar na caixa que estava em casa. Despertei sua mórbida curiosidade. Tive de confessar o conteúdo. Ele abriu até o skype para exibir uma geladeira lacrada para a namorada. Aparentemente, não apelou para o arrombamento.

É noite. Alego imprevistos e sinceramente me dispenso da aula que eu mesmo tinha para dar. Os alunos entendem. Chove em São Paulo. Custo a achar um táxi cúmplice. Corinthiano, sente que aquela carona à taça (“meu, você parece nervoso, você não tá me metendo em uma fria, né?”) carrega uma mensagem alvissareira para seu time – e quem pode dizer, seis anos depois, que ele estava errado? Pego a Libertadores em casa, levo ao aeroporto, chamo a atenção de todas as esferas de seguranças ao furar a fila em nome da pressa. Sou alvo de desconfiança. Libertadores? Você? Sozinho? Me cobram 700 reais de excesso de bagagem. Só peço, na verdade exijo, uma gentileza: acompanhar a taça no raio-x.

Foi quando a silhueta inconfundível da primeira maravilha do mundo da bola me apareceu, e a taça deixou de ser um grande freezer em pé. Definitivamente “se mira y no se toca”. Hora de descansar um pouco. Entro no avião. Fecho os olhos, permito-me desfrutar um pouco do momento inusitado soterrado de tensão, mas não dá tempo: um cutucão, um olhar sério e a pergunta: “É você o senhor Virgílio?”.

Por três segundos imaginei a taça espatifada. Por dois segundos me vi sendo preso por roubo. No sexto segundo, respondi que sim. Era apenas uma ordem de reembolso. Ufa. Foi um piscar de olhos e eu já estava em Assunção, aflito na esteira, à espera do adorável trambolho que fez o seu suspense, mas apareceu. Já estava com carimbo da imigração no passaporte, tudo feito por um funcionário especial da Conmebol. Era só pegar o case e partir, só que foi mais legal que isso.

Três soldados do exército, com fuzil em mãos, abriam espaço para eu passar, na verdade para a taça passar, falando grosso, alta performance em direção a um furgão sinistro com ninguém menos que Sálvio Spínola dentro, outro convidado do evento em Assunção. Ninguém me ajudou a manusear a geladeirona, pois não queriam “se comprometer”. O furgão parte. Oito quilômetros depois, a cancela da sede da Conmebol se abre e o estacionamento subterrâneo, à meia-luz, chão molhado, vazio, só tem duas pessoas bem vestidas e munidas de chaves e um envelope.

As chaves abriram o case. O envelope tinha minha reserva de hotel e minha passagem de volta. Só pude olhar para a Libertadores, assim, olho no olho, no momento de me despedir. Não deu para colocar minha camisa do XV de Jaú nela nem pra dar petelecos em sua base de madeira maciça, mas eu fui dela por um dia, ela minha, nos entendemos cordialmente e não faltou nada a ela. Um dia eu entro na Prataria Rebouças e recomeço um romance com alguém do meu tamanho.

 

*Esta história é verídica e aconteceu com o amigo Virgílio Neto.

 

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