Pasó todo

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Morreu Julio Grondona. Um dos ‘mandamás’ do futebol sul-americano, após 35 anos na gerência da Associação do Futebol Argentino, se foi aos 82 anos de idade, cumprindo ao pé da letra sua afirmativa de que “só sairia da AFA com os pés pra frente”.

A exemplo de outros caciques do continente, sempre foi capaz de lidar com os mais diversos governos, desde a criminosa ditadura até o kirchnerismo que e seus 12 anos de Casa Rosada. Também como em outros casos, pouco de sua obra pode ser utilizada como farol para os próximos tempos.

Para definir sua passagem pelo futebol, vale sua frase-lema, a qual carregou até os 80 anos no anel que celebrava seu matrimônio: “todo pasa”. De fato, passou de tudo na vida de ‘El Padrino’ (tradução ao espanhol do filme O poderoso chefão).

Claro que logo somos induzidos a qualificá-lo como o similar argentino de Ricardo Teixeira, mas houve uma diferença cabal: Grondona dedicou quase a vida toda ao futebol, desde antes da chegada à AFA, dado que o dono de uma ferraria fundou o Arsenal de Sarandi em 1957 e presidiu o glorioso Independiente de Avellaneda, entre 1976 e 1979, isto é, logo após o inigualável tetracampeonato do Rojo na Libertadores.

Seu estilo administrativo, isto sim, pode ser equiparado ao comparsa brasileiro. Organizou sua federação de modo a pairar muito acima dos clubes, centralizar todas as decisões e jamais abrir o flanco para sérias dissidências.

Conforme assinalou Fernando Prieto, entrevistado da última semana do Conexão Sudaca, tratou de tornar a federação forte e os clubes dependentes. Tanto que neste exato momento as agremiações esportivas do país devem 700 milhões de pesos à AFA.

Sempre se deu bem com a grande mídia corporativa de seu país, mas quando se viu encalacrado, e com o futebol sob ameaça de greve pelas dívidas dos clubes com jogadores, não hesitou em se aliar ao governo Kirchner e vender os direitos televisivos ao Estado, através do programa Fútbol Para Todos, que segue com os direitos de transmissão, o que levou a Torneos y Competencias (TyC), do grupo Clarín, à loucura.

Também teve seu nome implicado nos escândalos de suborno da ISL aos executivos da FIFA, ao lado de outras eminências do futebol, inclusive Teixeira, em processo já liquidado no tribunal da cidade suíça de Zug.

 

Um trágico vazio

Temos outra triste constatação do que resta após seu fim: tal como na CBF herdada por Marin, há um vazio de lideranças, que pode desaguar num tempo de bagunça ainda maior do que em sua época.

De maneira unânime, admiradores e opositores apontam que não há nenhum sucessor de confiança, seja por boas propostas, seja por habilidade de manter clubes, cartolas e políticos em algum estado próximo da harmonia.

Grondona nunca trabalhou pra formar um sucessor, e isso abre um período de incertezas no combalido futebol argentino, adoecido por uma violência quase incurável (nas palavras de Prieto, que interessa a governos, polícia e algumas figuras obscuras) e com um campeonato inchado a 30 clubes na próxima temporada, para acomodar interesses diversos, entre eles a maior cota de TV para a primeira divisão.

Para se ter ideia, vale citar o artigo 27 do Estatuto da AFA, com 14 incisos, como lembrou Juan Pablo Varsky, em texto de título esclarecedor: “Uma nova constituição para o futebol argentino”. Reza a carta magna da federação ao enumerar as atribuições do presidente: “Define todos os cargos executivos. Assina os acordos e documentos. Solicita ou obtém empréstimos e contrai as correspondentes obrigações com os bancos. Designa integrantes e define cargos no Tribunal de Disciplina, Colégio de Árbitros, Tribunal de Apelações e no Conselho Federal, que regula o futebol do interior. Tem reeleição indefinida”.

Enquanto começam as articulações entre grupos, tanto de dirigentes de clubes como políticos com trânsito na Casa Rosada, o presidente da AFA será Luis Segura, do Argentinos Juniors, escudeiro mais próximo de Don Julio em seus últimos dias e flagrado revendendo ingressos ilegalmente na Copa do Mundo recém jogada por aqui.

As demais opções ainda são especulativas, mas por trajetória recente são de fato nomes a serem considerados. Alejandro Marón ou Fernando Raffaini trariam uma expectativa de renovação e, quem sabe, novas práticas, uma vez que carregam a imagem de ‘clubes-modelo’ de Lanús e Vélez, os quais presidem no momento.

De outro lado, o filho do rei, Julio Ricardo Grondona, e Aníbal Fernandez, ex-chefe de gabinete do governo e senador, além de presidente do Quilmes, seriam a certeza de continuidade do “grondonismo”, com todos os seus conchavos tradicionais, autoritarismo administrativo e cumplicidade total com as máfias que se tornaram as barra-bravas argentinas – mais interessadas nos negócios propiciados pelo futebol do que na festa da arquibancada, para usar novamente as palavras de Fernando Prieto.

É muito cedo para sabermos se algum novo vento virá do Prata, pois a morte de Grondona ainda é recente e as movimentações políticas, tímidas. Ao menos no caso brasileiro, a saída de Teixeira não foi suficiente para fazer outros dirigentes trabalharem por uma renovação administrativa e, por incrível que pareça, agora, sob a égide de Marin e Del Nero, a situação alcança ser pior ainda do que com o ex-genro de Havelange.

Quanto à ingerência governamental, ela é maior por lá (ainda que por aqui os governos sempre sejam bem vindos na hora de passar o pires), o que no caso significa mais uma questão de uso político do futebol (a ponto de a oposição não pautar um recuo no programa Fútbol Para Todos) do que de imposição de maior transparência e responsabilidade.

O que sabemos é que o atual abismo entre o futebol europeu e o sul-americano, visível através do valor dado às competições continentais de cada um, só sofrerá algum esboço de redução a partir do momento em que os dois gigantes em crise começarem tudo de novo em casa e culminarem numa drástica mudança no aparelho máximo de poder local, a Conmebol.

Don Vito Corleone preparou seus filhos para a sucessão, na qual se sobressaiu Michael. Os capos Grondona e Teixeira jamais se deram tal trabalho.

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