É um burburinho e não é como a praça de alimentação de um shopping, mas harmônico e ritmado. Altos e baixos consonantes que quase matam aquele que, sem os olhos, só tem os ouvidos e só pode escutar aquilo que na verdade precisava ver para dar sorte, ver para crer. O reino dele por uma onda de gritos que venha lá de dentro e que num eco capaz de tremelicar o bairro consagre as duas horas, ou mais, de espera irredutível.
Muitos andam perdidos como ele. Somando pessoas e fantasmas temos uma multidão. Outros sentam, num inevitável tédio, comidos pela sensação de que a eternidade vai chegar antes do gol. O pipoqueiro está indiferente e alheio. É um alienígena no conceito dos demais. O policial não pode nem ligar o rádio e colocar o fone, e mesmo que pudesse, quem aguenta? Poucos suportam o drama que os narradores criam, cruéis, armados pela suposição que o ouvinte não tem outra saída que não seja acreditar no que ele diz.
Por vezes penso que namoradas de narradores de rádio nunca se recuperam. As construções de cenários desnecessariamente eletrizantes, a condução do fluxo de consciência rumo ao enfarto, a visão de mundo espetacularizada de momentos comuns, isso tudo deve deixar sequelas, tão quanto o futebol deixa – e como deixa, saiba você que depois de um certo número de jogos vistos toda quina e todo pedaço de ferro ou couro e todo batente e todo retângulo e toda meia-lua lembram futebol no primeiro reflexo mental.
Três admiráveis garotas com o estereótipo de um shopping, e não de um estádio, emolduram a universalidade do momento e sofrem na sarjeta. Os óculos escuros, os inhôcos nos cabelos para prendê-los e afastar o calor que vem de dentro pra fora, as bolsas esparramadas na calçada e a angústia que em corpos femininos fica tão mais dramático e fidagal. Uma delas ajoelha vez ou outra. As demais parecem entregues, paralisadas como se nada mais houvesse a ser feito, o que não as impelia, entretanto, a irem embora. Pois o futebol é a fé do ateu e a casa de praia dos milagres dessa vida.
Lá está o careca que comprou ingresso falso e deu entrevista babando, literalmente babando de raiva, para uma jornalista que, coitada, tem acesso ao estádio e não pode entrar, tampouco dar pro careca. Dar a entrada à arquibancada, claro. Ele anda pra lá e pra cá, ou então são muitos carecas que lá estão. É notável o número de carecas que acompanham este esporte, não tenho estudos mas na certa a porcentagem de carecas que amam futebol é maior que a de cabeludos.
O careca, e todos os outros, viram algumas pessoas saindo do templo antes do fim da peleja. O careca quis matar todos, um por um e com as próprias mãos, mas optou por olhar o semblante de alguns na expectativa de encontrar respostas, e encontrou: a coisa estava preta. Entre os que saíam, haviam tipos e tipos. Alguns, estafados após uma semana correta e educada diante de patrões e clientes, não aguentaram a perspectiva iminente de um domingo sem a catarse que daria sentido e absolvição aos dias pregressos e também aos futuros. Quem os julga?
Outros saíram simplesmente porque não aguentavam mais a tortura da espera, não de 90 minutos, mas de alguns anos, talvez os melhores e mais vívidos anos, que só não foram melhores porque a bola, colecionando cenas feias um réveillon depois do outro, nunca entrou. Os olhos chicoteavam a alma e enlouqueciam a cuca. Eles saíam pela rampa e deitavam, desabavam, na parte de fora do gigante com refletores já acesos. Quando o dia está raiando, meu bem, é preciso ir embora.
Os vendedores de cerveja, de bandeira, já estavam posicionados. Os guardadores de carro já tinham se mandado. O lusco-fusco das 18h05 não deixava mais sombra no chão, nem sombra de dúvidas. Era o fim, um fim repetido com cheiro de pernil vindo da barraquinha fumacenta e experiente.
No entanto a certeza maior desse fim vadio vinha, ainda, do som. O tal do burburinho, dos gritos e cantos, dos “ús” e “ês”. Não era mais detectável. Cada um berrava por si e sem cadência. A harmonia também já se mandara. No desespero todo mundo recorre à estupidez da individualidade.
Mas no futebol tem um negócio que qualquer ouvido decifra. É uma fração de segundo que dura tanto, tanto. É o silêncio mais absoluto que uma multidão pode fazer junta, o silêncio que nenhum padre ou general jamais vai conseguir extrair de sua turma. Trata-se do silêncio que precede o gol. Entre o chute e o balançar da rede. Pra não incomodar a gorduchinha nem atrapalhar o destino, eles sequer respiram. Tudo cala e tudo para, menos a bola, que parece decidir o que quer da vida.
Depois de negar um bom natal para esta gente por tantos anos seguidos, dessa vez ela entrou. No último minuto, mas entrou.
O silêncio que precede a explosão do gol foi sentido lá de fora. Pra depois ser soterrado pelo urro vital, a onda sonora que emaranhou o cabelo das meninas e arrepiou a careca dos rapazes. Pra depois ser confirmada por alguns corajosos com radinho de pilha: foi gol. Pra consagrar o vendedor de cerveja e encher o policial de um trabalho que ele vai cumprir com prazer.
Câmera alguma registrou o quanto correram e pularam aqueles do lado de fora.