Dia 3 – O Sábado dos Viciados
por Gabriel Brito
França 2 x 1 Austrália
Acordei de um sonho ruim: tinha cochilado demais, quando abria os olhos já eram 25 ou 30 do primeiro tempo de França e Austrália e eu ainda precisava esquentar água no micro-ondas antes de trocar a fralda da Ana Cecília. Desperto e vejo que Aninha apenas dormia no meu colo. Despacho-a de volta pra sua cama e me movo rapidamente para a sala munido de um cobertor. São 6:55, ufa.
Vamos ao dia mais cheio da Copa. Dez minutos de jogo: “vixi, pintou o campeão”. A França e seus negros maravilhosos pareciam esmagar os australianos. Mas foi só um sopro. Num 4-3-3 com jogadores de atrair a atenção de qualquer um, o timaço que desenhamos na mente ainda não existe em campo.
Pode ser juventude e falta de rodagem em grandes jogos. E ser protagonista de Copa do Mundo não é fácil. Mas pode ser que ainda faltem bons ajustes. Os três atacantes parecem distantes dos três meio-campistas, sempre muito espetados e à espera de uma enfiada de bola. Terão de girar mais pelo campo, a fim de permitir movimentações como na tabela que permitiu ao elegante Pogba chegar na frente da área e ser abençoado pelo destino no gol que os britânicos do hemisfério sul já não mereciam sofrer.
Inteligentes e bem treinados, os australianos povoavam o meio campo e, em superioridade numérica, conseguiam evitar que os avantes fossem bem munidos. Quando seguravam um pródigo 0-0, foram castigados pela nova máxima do futebol: se antes era “prensada é da defesa”, agora “o VAR é do ataque”.
Pois parece que as consultas ao vídeo sempre verão o toque, o esbarrão, o deslocamento, a “imprudência” que o olho nu tolera. Não foi pênalti em Griezmann, que não alcançaria a bola após o desarme no limite de Risdon. Mas no vídeo tudo é muito chocante, como alguns tentam alertar, em vão.
Umtiti teve uma privação de sentidos que fez justiça. Quando os australianos estavam confortáveis, veio a tabela que terminou no insólito gol meio contra meio de Pogba. Deschamps tentara mudar o jogo ao trocar dois atacantes por outros dois. Dembelé decepcionou e Giroud com sua experiência é opção. Mas vale a pena manter a aposta neste time de garotos esfuziantes.
Argentina 1-1 Islândia – que me parió!
Na estreia da vice-campeã, o temor por uma seleção sem cara, pra não dizer alma, se fez valer. Jorge Sampaoli escalou seu 12º time na mesma quantidade de apresentações de seu curto trabalho.
O ousado 2-3-3-2, da escola bielsista que levou o futebol chileno ao rol dos grandes e só não foi à Rússia justamente porque o profe abortou o trabalho em meio às Eliminatórias, deu lugar a mais um pragmático 4-2-3-1.
A albiceleste paga o preço do cambalache de um processo que teve três treinadores e nada aproveitou do trabalho de Sabella – até por ter sido outro remendo, até bem feito, de última hora. Difícil entender aonde se perdeu o encanto do selecionado bicampeão do mundo, que vive entressafra de uma geração que carrega a frustração de muitas finais perdidas para uma nova que ainda não teve tempo.
Dá para questionar as escolhas de todos os setores. Se a zaga não inspira confiança, Mascherano e Biglia formam uma volância cuja contribuição é difícil de enxergar. O gol de empate islandês, após a segunda perda de bola na saída de jogo, seguida de interminável vaivém no miolo, demonstra a ausência de solidez de um time que se não brilhava ao menos tivera o oportunismo de Aguero para abrir o placar no meio do paredão nórdico.
Messi é a referência de tudo, fez o que pode, ainda que sem inspiração, mas jogou demais pelo meio, contra um adversário que parecia uma defesa de handebol. Poderia ter caído pelos lados em alguns momentos. Dybala não poderia ficar fora do time titular. Lautaro Martinez tinha de estar no grupo como opção. Sua ausência equivale à de Neymar em 2010. Lo Celso é outro que poderia figurar em campo num time que irrita pela obviedade.
A falta de presença de espírito de uma seleção tão europeizada quanto a brasileira é assombrosa. Messi recebe, o resto corre, ou nem isso. Os islandeses entenderam a senha e tratavam de fechar caminhos. Mal pegavam na bola, mas isso não lhes fere a autoestima.
O pênalti perdido pelo rosarino marca uma jornada triste para uma escola tão grandiosa que se perdeu nos caminhos do futebol para exportação. Uma queda na primeira fase não soa mais absurda como em outros tempos. Como alertado pelo amigo Tiago Zau, o 10 do time do gelo, Sigurdson, teve excelente atuação, não tão perceptível numa esquadra que em nada prestigia um jogador de técnica e passe. E a garra de um time que sabe do lindo momento que vive terminou com um merecido prêmio.
Mas que tempos esses, em que nenhum analista considera absolutamente bizarro uma seleção deste porte, com o melhor jogador da década no comando, não vencer um time que beira o exotismo, a nata do futebol de um país do tamanho da Barra Funda.
Peru 0-1 Dinamarca
Na outra partida que envolvia um sudaca, a decepção foi igual ou maior. Fantástico o alento da torcida peruana para ver seu time depois de 36 anos de ausências mundialistas.
O Peru fez tudo certo. Time fisicamente impecável, com todo o coração em campo, jogou o que podia de melhor, criou chances, não fez e foi castigado. Cueva, Carrillo, Flores e Farfán são uma boa linha de frente. Diante do contexto, pareceu acertada a opção de Gareca em ter o grande símbolo da equipe no banco. Mas Paolo Guerrero terá de jogar 90 minutos contra o forte time francês.
Claro que a história seria outra se Cueva convertesse o penal que o vídeo presenteou. Aparentemente, os jogadores já subverteram a tecnologia e desenvolvem novos métodos para cavar pênaltis, forjando contatos, literalmente, de cinema. Time correto, a Dinamarca foi superada na maior parte do jogo, mas esteve sempre atenta à oportunidade, como no contra-ataque que terminou no gol da vitória de Yurare Poulsen. Eriksen é um camisa 10 de estirpe e também fez sua parte.
Doeu ver as inúmeras chances criadas pelo time inca pararem no goleiro Schmeichel ou se perdendo por centímetros. Mas diante do desempenho das equipes do grupo não é um disparate pensar numa surpresa ante a França. Que os deuses do futebol recompensem o injusto martírio de Guerrero.
Quanto aos vencedores, mais uma vez vimos o lado feliz das imigrações, que tanto enriquecem o esporte europeu, nas figuras de Yurare e Sisto, pra não falar de Braithwaite e do bom canhoto Delaney, também cidadão estadunidense.
Croácia 2-0 Nigéria
No fecho do nosso expediente, o complemento do grupo D. Após o inesperado empate argentino, o confronto já se tornara uma final. Vencer seria um enorme passo para as oitavas de final. A partida começou equilibrada, mas a partir do momento em que o time adriático achou o gol a partida se encaminhou de forma inequívoca.
Para os falantes do novo idioma da crônica esportiva, que descarta o lúdico como se tivesse reinventado tudo que se faz em campo, uma aula dos “controladores” Modric e Rakitic. Excelentes jogadores, claro. Mas além de terem feito apenas o mínimo que se deveria esperar de quaisquer jogadores de meio campo – acertar passes – é preciso dizer que mais uma vez a Nigéria se apresenta com um time sem sabor nenhum.
Aqui, de novo, a maldita europeização. Depois das promessas encantadoras do fim do século 20, o futebol africano só entrega equipes completamente apoiadas no modo europeu de jogar. Até porque quase sempre um técnico daquele continente dirige suas seleções.
Assim, a Nigéria – e também Camarões – virou um amontado de colossos atléticos que parecem ter a mesma cintura dos islandeses. Não há mais a união da força com habilidade, do vigor com a capacidade de fazer o imprevisto. E não é de hoje.
Dessa partida, não fica uma jogada interessante na memória. O gol de pênalti de Modric, a quinta bola na cal do dia, apenas tornou o resto do jogo um trâmite. E os croatas ficam numa boa, esperando uma Argentina em completa crise moral e identitária.
Da linha do Equador pra baixo, precisamos repensar tudo.