Por Luiz Felipe de Carvalho
Viajar. O momento em que deixamos pra trás tudo que é conhecido e certo e nos entregamos ao que o mundo tem a nos oferecer. O momento em que podemos usar a melhor versão de nós mesmos e, por conseguinte, da humanidade: a curiosidade, a alegria, o desprendimento, a celebração do que nos é diferente, a assimilação de outras culturas, outros fazeres, outras vidas. Mais importante ainda, o momento em que podemos chegar perto da definição da palavra liberdade, tão maltratada em nossas vidas cotidianas.
Acabo de voltar de uma viagem, acho que dá pra notar. E relendo o parágrafo acima, percebo que não chego nem perto de descrever o que significa realmente viajar para mim. Por isso, para essa primeira coluna após retornar, resolvi pesquisar como músicos e compositores descreveram esse momento. A pesquisa não foi feita com o auxílio do hegemônico método de se fazer pesquisas atualmente, aquele amiguinho de seis letras coloridas, e sim escarafunchando minha memória e, claro, minha coleção de CDs. Espero ter conseguido um bom panorama, ainda que obviamente incompleto, de canções de viagem.
(Todas as músicas em inglês tem a tradução feita por mim nos comentários do YouTube)
1 – Run Baby Run – Artista: Sheryl Crow – Composição: Bill Bottrell/David Baerwald/Sheryl Crow – Álbum: Tuesday Night Music Club (1993)
Adoro os dois primeiros versos (“Ela nasceu em novembro de 1963/No dia em que Aldous Huxley morreu”), mas o que importa dentro do tema proposto é o espírito livre da personagem central, sua vocação para partir, aquela chama que a faz simplesmente querer correr e correr, e olhar “esperançosa pela janela”, sem criar raízes, “indo embora antes que eles possam dizer até logo”.
Aqui temos um casal fazendo planos de viajar juntos, mas com alguns problemas ainda impedindo que isso aconteça de fato. Então o refrão fala tudo aquilo que uma viagem traz, e que o personagem principal está precisando – e que todos nós precisamos em algum momento. É o resumo, em poucos versos, do bem que uma viagem pode fazer.
2 – Asleep on a Sunbeam – Artista: Belle & Sebastian – Composição: Belle & Sebastian – Álbum: Dear Catastrophe Waitress (2003)
3 – De Teresina a São Luís – Artista: Luiz Gonzaga – Composição: João do Vale/Helena Gonzaga Álbum: Ô Véio Macho (1962)
Creditada a João do Vale (autor de clássicos como “Carcará” e “Pisa na fulô”) e Helena Gonzaga, esposa de Luiz Gonzaga, a canção, segundo o Dicionário Cravo Albin da MPB, é na verdade de Luiz e João, que eram de editoras diferentes e por isso não podiam assinar juntos a composição. Curiosidade à parte, trata-se do relato de uma viagem de trem bastante peculiar pelo sertão nordestino, entre a capital piauiense e a capital maranhense, citando os nomes das cidades no caminho. Eu e minha namorada fizemos essa viagem (de ônibus) em 2010, e dentre as particularidades descritas na letra podemos atestar que a venda de comida aos passageiros continuava a todo vapor!
4 – Trem das Cores – Artista: Caetano Veloso – Composição: Caetano Veloso – Álbum: Cores, Nomes (1982)
No encarte do disco, ao lado do nome da canção, está escrito entre parênteses “para Sônia”. O sobrenome da moça é Braga, e na miríade de cores descritas com absurda poesia por Caetano, estão os “lábios cor de açaí”, o “mel desses olhos luz” e o “cabelo preto, explícito objeto” da moça. Se na faixa anterior a viagem era bem real, aqui o trem de Caetano vê paisagens e cores que passam pelo filtro da paixão, e deixam tudo mais bonito. Eu até hoje me impressiono por não haver um único verso fora do lugar. O clipe que escolhi para linkar tem a seguinte descrição: “clipe produzido e editado com finalidades pedagógicas: análise dos mecanismos de descrição dinâmica e das figuras de linguagem encontradas na composição de Caetano Veloso-Trem das cores”
5 – Peão de Trecho – Artista: Zé Geraldo – Composição: Zé Geraldo – Álbum: Viagens & Versos (1990)
Desse disco foi difícil escolher uma só, porque é praticamente um álbum conceitual sobre viagem, como o nome indica. Entre as canções sobre o tema o ponto de vista de um caminhoneiro, viajante por profissão, é o mais comum. É o que acontece nessa faixa, que tem o inspirador refrão “Uma parte do mundo é nossa morada/A outra parte é nosso quintal”. Difícil resistir ao chamado, que de certa maneira lembra Lennon falando de um mundo sem fronteiras. Sim, é tudo nosso, da humanidade, e faz pensar sobre como certas noções de patriotismo e xenofobia são ridículas.
6 – Uma Nova Cidade – Artista: Oswaldo Montenegro – Composição: Mongol – Álbum: Estrada Nova (2002)
Até agora muita alegria, muita festa, então é hora do Oswaldo mostrar que não é só isso, que viajar também tem um componente de dor. Interpretando a canção de seu parceiro Mongol (também autor de “Agonia”), Oswaldo fala sobre a saudade que fica de um lugar que não é nosso, e também da “dor e o prazer de inventar toda felicidade”, algo inerente a qualquer viagem. Não estamos na zona de conforto, não temos nossa casa, nossos amigos, estamos inventando uma nova vida, nem que seja por alguns dias.
7 – Minas Gerais – Artista: O Terno – Composição: Tim Bernardes – Álbum: Melhor Do Que Parece (2016)
Sem tirar o pezinho de Minas vem esse relato afetivo sobre o estado mais afetivo do Brasil. Tim Bernardes é jovem, e fala sobre estar no carro com seus amigos, sobre tomar cachaça, mas também fala sobre montanhas, pão e café, e sobre envelhecer em Minas, sobre ser o lugar que ele quer estar no fim da vida. Aqui também temos bastante da dor presente na canção anterior. Tim tem esse talento pra melancolia, e suas canções emotivas para mim são melhores do que as cerebrais, onde ele às vezes me soa um pouco cínico.
8 – Coração de Todo Mundo – Artista: Oswaldo Montenegro – Composição: Raimundo Costa/Oswaldo Montenegro – Álbum – Oswaldo Montenegro (1990)
Tem explicação o fato de Oswaldo ser o único agraciado com duas canções nesse pequeno compêndio: as duas me vieram à memória como obrigatórias durante meu “escarafunchamento” da memória. Desde pequeno adoro o arranjo dessa música, que me trazia uma sensação de mistério e exotismo, e sua letra que é uma volta ao mundo, com citações à diversos países.
9 – Cavalo Bravo – Artista: Renato Teixeira – Composição: Renato Teixeira – Álbum: Amora (1979)
Infelizmente a discografia do Renato é difícil de ser encontrada em CD. Então eu tenho cá uma coletânea do artista que contém essa música. Mas eu sempre pulava essa faixa. Achava chata. Até que em viagens de carro com minha namorada, descobri que ela adorava, e sempre botava o volume no talo para ouvi-la. Aos poucos eu comecei a perceber que idiota eu era. A metáfora do animal selvagem para falar sobre a necessidade humana de viajar é perfeita, e a música, com sua flauta introdutória e seu clima de aventura proibida, é perfeita pra qualquer estradeiro que se preze: “e lá vou eu mundo afora/Montado em meu próprio dorso”.
10 – Missões Naturais – Artista: Almir Sater – Composição: Almir Sater/Renato Teixeira – Álbum: Cria (1986)
Embora sejam amigos, acho que Almir iria se magoar se não estivesse nessa lista depois de seu parceiro entrar. Mas ele não correu esse risco, já que não dava pra deixar de fora uma canção com versos como “eu aprendi a ver esse mundo/Com meu olhar mais profundo/Que é o olhar mais vagabundo”. A letra fala sobre a vida na estrada, com “Paraná, Goiás, Minas Gerais e Maranhão”, falando sobre a sina de todo artista popular. Em resumo: “Só o aventureiro é capaz/De partir e não voltar mais”.
11 – Out on the road – Artista: Norah Jones – Composição: Norah Jones/Brian Burton – Álbum: Little Broken Hearts (2012)
Viajar às vezes é uma maneira de mudar algo que não anda muito bem. A estrada tem esse poder transformador. É o que Norah Jones retrata aqui, uma viagem que acontece por um extrema necessidade de que certas coisas mudem. Ao partir não se sabe exatamente como essa mudança vai ocorrer – e existe até mesmo a possibilidade de que se perceba que não há nada pra mudar. Mas é uma consciência que só a poeira pode trazer.
12 – California – Artista: Joni Mitchell – Composição: Joni Mitchell – Álbum: Blue (1971)
Nenhuma lei proíbe estar viajando e sentir saudades de casa. O título dessa canção de Joni Mitchell não é do lugar que ela está visitando, mas sim do lugar que ela sente falta enquanto está fora. E quando Joni Mitchell está sentindo aquele banzo, a única certeza que temos é que virá poesia daí.
13 – La Luna de Rasquí – Artista: Jorge Drexler – Composição: Jorge Drexler – Álbum: Bailar En La Cueva (2014)
Mesmo que o espanhol não fosse uma língua parecida com a nossa e não pudéssemos entender patavina do que diz Jorge Drexler nessa canção, a gente se sentiria exatamente onde ele quer que nos sintamos: em uma praia no Caribe. O idílio por excelência: areia branca, mar e lua. É disso que trata a letra (mas nem precisava). Rasquí é uma ilha do arquipélago de Los Roques, na Venezuela. E a lua de lá diz a Jorge que “a dor não chega até aqui”. A gente já viu que até chega. Mas às vezes parece mesmo que não.
https://www.youtube.com/watch?v=OZFuyJC4YJs
14 – Jardim do Edén – Artista: Marcelo Jeneci – Composição: Marcelo Jeneci/Arnaldo Antunes/Betão Aguiar – Álbum: Feito Pra Acabar (2010)
Continuando na pegada caribenha, dessa vez um Caribe brasileiro, pensado por Jeneci com Arnaldo Antunes e Betão Aguiar, e cantada por Laura Lavieri, que sempre dá um toque feminino nos álbuns de Jeneci. Aqui estamos no terreno da abstração, um lugar imaginado como perfeito, como uma “Xanadu, Xangri-lá, Jardim do Edén, Paraisópolis”. Uma praia sempre é a representação mais bem acabada do paraíso, com “um coqueiro aqui, um coqueiro lá”.
15 – Carro de Boi – Artista: Milton Nascimento – Composição: Maurício Tapajós/Cacaso – Álbum: Geraes (1976)
O meio de transporte utilizado não importa tanto quando a vontade é de sair. Pode ser até um carro de boi. Milton canta sobre uma viagem que não tem volta, onde a “estrada só me leva, só me leva, nunca mais me traz”. A jornada pode trazer autoconhecimento e ajudar a descobrir onde a essência se perdeu. E se for pra sempre, que assim seja: “barro, pedra, pó e nunca mais”.
16 – Santorini Blues – Artista: Paralamas do Sucesso – Composição: Herbert Vianna – Álbum: Hey Na Na (1998)
Herbert faz uma ode a um lugar específico, a ilha grega de Santorini, e com o prisma da nostalgia, que sempre deixa tudo mais bonito. Herbert fala à sua filha Hope Izabel, e diz que “nossos dias de sol eram assim”, mostrando que fala de algo que já passou. É algo curioso sobre as viagens: mesmo que o durante traga perrengues e momentos não tão bons, a memória é sempre perfeita, e mesmo as partes ruins se transformam em poesia.
17 – Meu Balão Vai Voar – Artista: Siba – Composição: Siba – Álbum: De Baile Solto (2015)
Poderia ser monótona. Melodia repetida infinitamente em estrofes de três versos. Mas a melodia é boa e os versos, melhores ainda. “Vambora olhar pra frente, o dia é claro/Depois que eu saio eu não paro/Nem pro trem passar” e “A folha carregada pelo vento/Não desperdiça o momento/Faz balé no ar” são apenas bons exemplos entre as dezesseis estrofes, quase todas falando sobre o ato de viajar, partir, arribar, desembestar. E ainda tem o hilariante diálogo depois da estrofe número onze, que me faz rir a cada audição.
18 – Graceland – Artista: Paul Simon – Composição: Paul Simon – Álbum: Graceland (1986)
Para gravar esse álbum, Paul Simon fez algumas bases instrumentais na África do Sul. Ao voltar para os Estados Unidos ele começou a colocar as letras nessas bases. Para esta canção, que lembrava um country acelerado meio Johnny Cash, ele só conseguia falar de Graceland (a famosa casa de Elvis Presley em Memphis). Ele achava que falar sobre aquilo não tinha nada a ver com o álbum que só tinha músicos africanos, e tentou criar outra letra, mas não conseguiu. Então pensou “talvez eu precise ir até Graceland”. E assim o fez. A letra fala exatamente desta viagem, mas também pode ser lida como uma viagem para um lugar mágico (Graceland pode ser traduzido como Terra da Graça). Mais um detalhe “mágico”: quem faz os vocais de apoio são ninguém menos do que os Everly Brothers,
19 – Traveling Light – Artista: Leonard Cohen – Composição: Leonard Cohen/Patrick Leonar/Adam Cohen – Álbum: You Want It Darker (2016)
Leonard Cohen estava no fim da vida, e fez um disco inteiro praticamente sobre isso (ele morreu no mesmo ano do lançamento do disco). Nesta letra a metáfora é a viagem final, e é preciso um artista corajoso para escrever sobre a própria morte. Apesar de melancólica, há poesia nessa jornada derradeira – ao menos quando se trata de Leonard Cohen.
20 – Wind In Our Sail – Artista: Weezer – Composição: Rivers Cuomo – Álbum: Weezer (The White Album, 2016)
Só pro número ficar redondo e pra finalizar com mais energia e pulsar de vida. Uma viagem de barco a vela com o pessoal do Weezer, com direito à citação à viagem de Charles Darwin com seu barco Beagle, no ensolarado e cativante refrão.
Regina disse:
Não tenho repertório musical pra esta lista, mas adoro viajar e a leitura dos textos sobre as músicas me fez viajar pelos oceanos e conhecer Minas Gerais por trem ou de carro de boi.
“Estrada só me leva, só me leva, nunca mais me traz” é quase verdade. Mas também tenho saudades de casa.