Por Fernando Vives
Elizabeth Santos Leal de Carvalho viveu na contramão do que o Brasil, esse Brasil pessoa jurídica que odeia sua pessoa física, se tornou nos últimos anos, e que de tempos em tempos volta a se tornar. Branca, filha da classe média carioca zona sul (seu pai, um comunista perseguido pela Ditadura), entendeu cedo o tesouro cultural negro que pulsava nos morros a ele se misturou.
Enquanto a elite brasileira novamente tinha sonhos embranquecedores — o samba sempre associado ao vadio, ao preguiçoso — e boicotava possibilidades de ascendência social negra durante o regime militar, Beth Carvalho ajudou a mostrar e consolidar a identidade cultural que tem na negritude um traço dominante e fundamental. Não foi a única nem a primeira a fazer isso, mas foi uma das mais importantes. Apoiou, empoderou e ajudou a consolidar o samba como fenômeno cultural das massas. O samba negro tem uma de suas rainhas branca e essa rainha é Beth Carvalho, e nessa mistura reside o melhor do Brasil.
Seus discos primordiais no início dos anos 1970 contribuíram por colocar Nelson Cavaquinho e Cartola num bastião superior da música brasileira. O primeiro, um tanto esquecido à época, deu a ela a gravação definitiva de Folhas Secas, um clássico cuja melodia vai descendo como folhas caídas de uma mangueira até o chão, e volta a subir como se o vento a levasse, na magistral interpretação de Beth de 1973. O segundo, já nos acréscimos da vida, ouviu “As rosas não falam” na voz dela e a ela denominou como sua intérprete favorita. A benção de Nelson e Cartola a eleva a um bastião superior da música brasileira que muito poucos conseguiram chegar.
Foi Beth quem alçou a nova fase do samba nos anos 80 ao frequentar os pagodes do clube Cacique de Ramos, em Olaria, e bater os pés para que Almir Guineto, Arlindo Cruz, Jorge Aragão e Zeca Pagodinho, entre outros, fossem gravados. O que veio do samba depois disso quase sempre passou pelo legado de Cacique de Ramos.
Em “A velhice da porta-bandeira”, canção de Eduardo Gudin e Paulo Cesar Pinheiro gravada em 1973, Beth Carvalho tem uma de suas magníficas (e um tanto subvalorizada) interpretações. A canção conta a história da porta-bandeira veterana que desiste de desfilar e passa o bastão a outra, e lida com o turbilhão emocional de ser substituída e esquecida pelo público. Mas, na hora do desfile, supera o momento e aplaude sua sucessora. A passagem está feita. A bandeira de Beth Carvalho é, através do samba, a do Brasil mestiço e orgulhoso de sua cultura popular, vasta como poucas no mundo. Bandeira que sua Estação Primeira de Mangueira historicamente defendeu no desfile campeão da Sapucaí deste louco ano de 2019, celebrando o Brasil que as elites querem ver embaixo do tapete. Uma bandeira que todos nós deveríamos lutar.