Por Leandro Iamin
O acúmulo de dinheiro infinito causa nos seus donos, entre outras coisas, um sedutor e angustiante dilema: sem mais contato com o impossível das coisas, já que tudo dá pra ter, tenta-se vencer o tempo do mundo. Por maiores que sejam as mansões e mesmo que tudo, das filhas na sala aos morangos fresquinhos na geladeira, da piscina olímpica ao jet-ski no lago particular, esteja à mão, a ideia de distância ganha uma dinâmica, para eles, diferente daquela que a gente, plebe das arquibancadas e sofás, experimenta. Afinal, uma ida de helicóptero a um jogo de basquete com a filha custa proporcionalmente o que a gente gasta com um pedaço de torresmo numa padaria modesta. E então, em algum momento, parece que decolar é atividade banal como entrar em um elevador. Todos os dias magnatas, empresários de alta patente, políticos de primeiro escalão e astros do cinema, música e esporte carimbam passaportes, assinam folhas de hotéis, chegam e partem de lugares que às vezes nem conseguem lembrar qual é. Estatisticamente, os acidentes envolvendo estes ativos exploradores dos espaços são mais raros do que as doenças que debilitam de morte os anônimos clássicos. Quando acontecem, porém, borrifam no ar este perfume de arrogância nossa: somos, os vivos, craques em catalogar as mortes como muito ou pouco estúpidas. Seja pela forma, seja pela antecipação com que a morte chega, nunca falta quem ofenda o evento autoritário do óbito. “Tão cedo”.
O que a gente lembra pouco é que mesmo para quem tem todo o dinheiro do mundo, é preciso que haja alguma pulsão vital e que ela seja estimulada. É preciso estar, ou ser, apaixonado por alguma coisa, e assim, por ela, faremos o que estiver ao nosso alcance. Kobe Bryant teve esta relação com o basquete. Com o esporte. Frequentador de arquibancada, sempre antenado com este mundo, presença como espectador em Olimpíadas, Mundiais, era evidente que pegar um helicóptero para levar a filha para jogar basquete fazia, para ele, tanto sentido quanto ter o próprio nome neste time e ser um de seus financiadores. Entre tantos veteranos aposentados ressentidos com o jogo e seu ambiente, Kobe tinha em Gianna, 13 anos, aquela que prolongaria seu álibi e seu vício. Uma cooptada pela apaixonante atividade do pai. Kobe, confinado em uma pequena quadra negociando décimos de segundos com adversários imensos, humilhou incontáveis vezes o lado ordinário da existência. Fogueira que consome e exige tanta madeira, aqueles que são, ao mesmo tempo, os mais talentosos e competitivos da turma vivem em um universo no qual a gente não entra.
Aqueles que são como Kobe dão a si mesmos concessões irracionais, absurdas se tiradas do contexto esportivo. Divertem-se em um ambiente de perturbação e pressão, levitam e encontram o nirvana na hora da maior encrenca em uma inviável final de campeonato. O que pra gente é o inferno dos semideuses do esporte significa, para eles, paraíso sem ilusão de ótica nem necessidade de palavras miúdas. Nunca queira entrar na cabeça de um Kobe quando Kobe enfrenta LeBron. Não é pra gente. A arte e a fome destes é como um código Morse cuja leitura não é dividida com o público, e seus embates, que são na verdade um abraço de almas, chega com tanta fantasia na nossa tela de TV, nos inspira e apaixona de um jeito que vale a pena e já basta, mas que, para eles, para estes, não se trata exatamente daquilo que a gente consegue enxergar. Um arremesso gera cinco mil fotos, mas nenhuma delas desvenda o mistério animalesco que faz um atleta como Kobe testar tanto e sempre o limite do céu do esporte.
E assim, o jogo que se resume à negociação de pequenos espaços para acertar a bola em um pequeno aro enquanto o tempo anda pra trás e não pra frente contrasta com a imagem de ter um mundo imenso para explorar, um céu literal para voar e muitos hectares de um lar esperando a sua volta. Tão trágica assim, a morte de Kobe indo plantar mais uma sementinha na vida esportiva da sua filha e cúmplice Gianna une a causa de suas vidas com a causa de suas mortes. Nada lírico, mas eu não via mesmo Kobe perdendo para a diabetes ou a úlcera. Tinha que ter basquete no meio. Quanto à Gianna, que levava no helicóptero uma companheira de time, da mesma idade, só temos, durante a lenta digestão, a lembrança de que a morte de quem tinha o futuro da vida e do esporte é sempre mais dramática do que a morte de um atleta que, findo o último jogo, passa a ser, e para sempre o é, morto ou vivo, um passado filmado e fotografado para a visita eterna de seus enlutados.
Aqui no Brasil, poucos dias atrás, um contador de histórias chamado Mendel, jornalista da ESPN, perdeu, em um acidente no apartamento da família no Guarujá, o filho Artur, de 5 anos. O tamanho da tragédia uniu a comunidade esportiva, jornalística, virtual, sem que seja possível a qualquer um de nós fazer ideia do tamanho da dor. Ela não tem nome nem medida, afinal. A reação coletiva a um desastre que se impõe tão repentino e, na nossa limitação interpretativa, tão evitável, de alguma forma coloca, como poucas outras ocasiões em um mundo com tantas áreas VIP para separar tudo de todos, as experiências humanas de dor extrema em um lugar único, comum a todos. Mendel, colega de profissão, acessível, apesar do bom salário, é alguém que abandonou a ideia de ser milionário e que ainda estuda os horários do trânsito para o litoral para passar o menor tempo possível engarrafado dentro de um carro – que certamente não é uma Ferrari. A tristeza é universal, como a alegria não é privilégio de poucos e diariamente namoros começam nas mais miseráveis famílias. Entre um bairro rico na Califórnia e uma estância balneária lotada de paulistas existe, agora, janeiro de 2020 como elo e duas crianças de lindos sorrisos, agora interrompidos, como derrota.
A morte de uma lenda do esporte (particularmente um ídolo de primeiríssima prateleira), ainda que tanto doa, está, paradoxalmente, cheia de vida, posto que as lendas e os ídolos misturam presente e passado e existem naquilo que fundaram dentro da gente mais do que dependem de aparição diária para comprovar atividade de vida. Esta, claro, nos dói. A de Gianna, e de Artur, nos arrebenta um tanto mais. Não tem consolo.
Um comentário em “Entre Kobe e Mendel, as crianças e o vazio”