A Desumanização

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Por Victor Faria

O meu pai declarou: a Islândia deve jogar como pensa. A Islândia é temperamental. Imatura como as crianças, mimada. Tem uma idade pueril. É, no cômputo do mundo, infante. Mas deve decidir a partir do erro e por isso deve soar agressiva e exuberante.

Na noite anterior dizia em metáforas particulares:

Não te aproximes demasiado da área adversária, podem ter braços que puxem a bola que em mãos inimigas morre afogada. Não pules demasiado alto, podem vir pés no vento que te queiram fazer cair. Não cobices demasiado o gol de placa, pode ser uma miragem a surgir nos olhos. Não te enganes com toda a torcida, podem ser ursos deitados à espera de comer. Tudo na Islândia pensa. Sem pensar, nada tem provimento aqui. Milagres e mais milagres, falava assim. E tudo que se pensa é o pior.

Diante da instável convicção de que as palavras salvariam, enfurecia-me por me apertar ainda o peito e a tristeza trazer a paralisação dos gestos, das ideias diante de resultados negativos.

Queria uma jogada chave, extremamente tática, uma jogada que usasse todos os jogadores e muitas vezes, até não se bastar com toques de categoria e chutes ao gol. Um lance tão feito de tudo que, quando a dita repousasse no gramado definitivamente, sem se ir embora para a que pudéssemos admirar.

O meu pai escrevia os planos táticos e fervia de se pôr na prancheta. Inventava jogadas como se não fosse o autor. Pasmava diante delas, incrédulo, com dificuldade em entender de onde surgia o começo de tudo, os passes, o trato com a bola, organização e ritmo, como era possível que o explicassem.

E eu achava que não explicavam nada. Eu queria olhar para o campo e ver Sigurdsson correr. Mais os outros. Não queria ver a aplicação tática aprumada de meu pai, a obediência, sua devoção esforçada. Queria que o campo fosse um espetáculo com seus protagonistas que nos conduzisse para longe, que abrisse janelas para a lista do mundo.

Um certo tipo de atração nos conduziria à Eurocopa.

No estádio, ajeitados devidamente para o jogo, reparávamos sempre em como as pessoas limpas. Como se tivessem, pelo jogo, se sujeitados a trabalhos mais lentos, onde se sujassem mais devagar. Estavam sempre mais bonitas. Calavam-se na rua. O oposto na torcida. As vozes tomavam o campo. Naquele pressuposto instante podiam morrer felizes. Sigurdsson já estava em campo. Pouco adiantava que tentassem convencer da integridade do adversário. Postergava a bizarra esperança.

Jogávamos em linha na defesa. Avançávamos nossos meias sem risco. As oportunidades abundavam para nossa segurança. Sem perigo em jogadas adversárias. Ao nosso favor a obediência tática e o resultado merecido. Quando um pequeno país triunfa, sobe-se em festa ao céu. Ia avisar a todos que eram um bom time. Sim, os pequenos. Ensinaram a esperar e morder na hora certa. Era como dizer que lhes ensinavam a dor de perder.

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Não lamentei o sofrimento daqueles no momento em que desfaleciam em campo. Eram maduros pra nós, talvez maduros pra eles próprios. Não era nada mais do que o modo de jogo tanto propunham. Perder era uma tarefa que devia desempenhar-se com humildade.

Esse pequeno campo, pensei, deve ser parte da história. Cada jogador. A linha de passe. Chamei meu pai. Disse-lhe que as jogadas eram sim, como aquelas contadas e imaginadas, as quais, por definição e hábito, podíamos tocar também. Adequadas ao tamanho que quiséssemos. Do que se quisesse guardar.

Adiante sonharemos novos triunfos. A glória em campo, o herói em suas batalhas. Meu pai sabia de tudo que aconteceria. Com ele e o time, tocávamos.

Dentro das quatro linhas jogavam criaturas que se matavam uma pelas outras, por seu criador ou por seus espectadores.

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