Todo aquele que consegue uma ascensão, se tiver o mínimo de noção de seu lugar no mundo, passa pelo contraste entre a nova e a velha realidade.
Esta parece ser a encruzilhada pela qual passa o Corinthians, com seu portentoso estádio, respaldado por um passado humilde e, formalmente, sem casa própria. Ver um jogo do clube num campo à moda antiga apenas reforça a confusão de sentimentos.
Foi isso o que eu e mais alguns colegas sentimos, após vivermos a oportunidade de viajar ao Uruguai justo quando nosso clube jogaria por lá pela Libertadores, no simpático Estadio Luis Franzini, em Montevidéu.
As contradições começaram logo na véspera. Um de nossos colegas e sua namorada, a passeio pela cidade, foram ao treino de reconhecimento corintiano no estádio. Com toda a leveza que caracteriza o povo local, os portões estavam abertos e não havia nenhuma objeção para que se entrasse e olhasse a cancha do Defensor Sporting Club.
Foi o que fizeram. Fotógrafa, a garota logo se aproximou e começou a fazer registros do “treino”, tal como qualquer outro alvo turístico. E aí registro a primeira pancada. Veio um brutamontes, com todo aquele tradicional protocolo policial brasileiro (aliás, deve ser ou ter sido um) e logo ordenou, sob fortes constrangimentos, que se apagassem as fotos. Amedrontada, a menina acedeu ao pedido, não sem deixar de ouvir um esculacho, como se estivéssemos naqueles enquadros fora de qualquer padrão moral praticados frequentemente por nossas forças de “segurança”.
A alegação, falsa, ridícula, era de proteção ao direito de imagem, sendo que o distinto homem ainda ameaçou com algum tipo de prisão, como se portasse qualquer traço de autoridade em terras estrangeiras – lembrando que os donos da casa deixavam entrar quem quisesse.
Ao saber da história, é claro que os corintianos da viagem logo se envergonharam, sentiram vontade de pedir desculpas em nome do clube para aclarar que nem tudo que cerca o alvinegro virou essa grife embasbacada a transformar qualquer ninharia em “direitos” e, portanto, dinheiro.
Mas não podemos falar em nome da instituição, de modo que tivemos de mastigar a bronca e lembrar dos tempos diferentes que vive este novo rico.
Na terça, dia da partida, fomos nós ao Franzini, localizado no belo Parque Jose Enrique Rodó, escritor fundamental da literatura uruguaia – aliás, Montevidéu prima por áreas verdes bem preservadas e desfrutadas pela população, ao passo que a “locomotiva” mostra toda sua miséria ao negar um quadrilátero de área verde a uma população cercada da mais intensa verticalização.
A mesma coisa. Sem apuro, as entradas ainda não se vendiam. De toda forma, as portas estavam novamente abertas e entramos sem pedir licença pra ninguém. Ao entrar nos tablones, vimos uns 30 caras da Estopim da Fiel tirando fotos.
Não demorou e logo escutei: “porra, viajamo 30 horas pra jogar num campo desse?”. Não consegui ficar calado. “É, isso mesmo. Legal o lugar”.
Virei pro meu irmão, um tanto irritado: “depois querem falar que são maloqueiro e sofredor”.
Ainda remoendo a cena, esperei o bonde deixar a cancha, a qual contemplei mais uns 5 minutos. Ao sair, logo me deparo com uma latinha de skol largada no meio da rua. Recolhi, pois não queria deixar os anfitriões com a certeza dos boludos que somos, e a joguei em uma das inúmeras lixeiras que se ofereciam, rodeadas de várias placas solicitando a preservação do parque. Afinal, nós somos os modernos.
Antes fosse a única contradição. Mas ainda não são suficientes para nos baixarem os braços. Além do mais, o novo futebol leva seus adventos a todos os cantos do mundo, em maior ou menor escala.
Isso nos fez dar de cara com ingressos de visitante a incríveis 120 reais. Recusamos e resolvemos nos misturar na plateia central, onde predominaria a hinchada do Danubio, mas também haveria público misto, tão festejado em sua versão artificialíssima recém-testada por aqui.
Pagamos pouco ali. E vimos o jogo ao lado de pessoas de diversas preferências, dado que por lá o sócio de qualquer clube uruguaio poderia comprar entrada a preços ainda mais módicos.
Fomos ao lado próximo da torcida corintiana, com as camisas do clube e vivemos o jogo tal como gostaríamos, ou seja, em pé e fazendo barulho. Com toda a simplicidade no ambiente, um alambrado que nos deixava a um metro da lateral e a possibilidade de falar na orelha de Tite.
A nosso ver, o ideal do futebol, simples, autêntico. Estranhamente, as arenas, por mais próximas que coloquem o público do campo, não transmitem o mesmo calor.
No Itaquerão, meu irmão não alertaria o Adenor sobre os perigos de Uendel, tendo como resposta um gesto do tipo “pode deixar, tô de olho”. Tampouco daria o esculacho que deu em Luciano, já ao fim do jogo, com a vitória consumada.
“Mete a mala no derby o caralho! Aqui não, aqui é Corinthians! Quer meter a mala vai pro Flamengo!!!”, esbravejou, em referência às campanhas publicitárias que uma certa marca tem feito no futebol, com inexpressivos bois de piranha como o atacante corintiano.
Isso porque nosso preparador físico orientou alguns alongamentos extras aos jogadores que não entraram. “Deixa só o Luciano aí, libera o resto!”, sugeriu o vigilante torcedor.
Para quem nunca havia visto o clube fora do país, uma noite perfeita. Cerveja, amigos, torcida em pé grudada no alambrado, nenhum monitor querendo me fazer sentir VIP e papo reto com os jogadores, coisa que, por sinal, todos nos desacostumamos. Basta ver a cara que fez Luciano quando saímos de seu encalço.
O futebol de hoje é assim. O sujeito não fez nada na carreira, mas nunca ouviu uma crítica. Aliás, o novo modelo de futebol imposto é assim também. Nunca nos deu nada de bom, mas é absolutamente incapaz de ouvir restrições, taxando seus dissidentes de saudosistas e afins, e, em última instância, bandidos mesmo.
De toda forma, seguimos. Com a certeza reafirmada de que um estádio como o do Defensor pode nos dar aquilo que os novos CEOs chamam de “experiência completa” em doses muito mais prazerosas que as novas arenas e todo seu clima de Sala São Paulo de Artes.