*por Victor Faria
Quando um coágulo de sangue quase explodiu na cabeça de Marcelo Oliveira, sentiu que algo nele foi cortado, como uma mangueira ou um caule. E o seu pensamento viu-se subitamente decepado do corpo.
Sem qualquer espanto, porque a dor lancinante não teve sequer o tempo de traduzir-se em grito antes que aquela estranha guilhotina o truncasse na boca. Passado isso, nada mais havia a não ser uma nova dimensão.
O diretor de futebol acha que não há esperança – repetia um amigo próximo em voz baixa, a eventuais curiosos. – Ele certamente continuará desempenhando suas funções, treinando, mas o resultado não tornará a ver. Em seu cargo não haverá novidades, não pensará em soluções para o time. Apenas respirará com um resultado positivo.
De fato, com dificuldade, Marcelo respirava. Os pulmões, egoisticamente alheios à situação, continuavam exercendo sua tarefa com a mesma fiel regularidade com que durante muito tempo lhe haviam fornecido aquele ar indispensável para que se levantasse a cada manhã, e a cada dia se preparasse para a próxima partida, diante de sua prancheta, análise das jogadas que produzia para melhorar o próprio time, e com ele sua condição indispensável de professor.
Marcelo teria ficado orgulhoso de seus pulmões, se apenas se desse conta de que funcionavam, ou sequer de que se mantinha. Mas, apesar de ter seu cargo garantido, possuindo a confiança do presidente do clube, sentia a desconfiança que o cercava. Seu cérebro não assimilava as críticas sobre o seu trabalho e comportava-se como se delas não necessitasse. Assim como não necessitava de mudanças ou de um novo olhar sobre a equipe.
Cortada a confiança dos jogadores em seu método, Marcelo Oliveira parecia não dar mais ordens. E os conselheiros do clube, enganados pelo silêncio dessa voz de comando, haviam decretado seu fim.
Talvez fosse mais correto dizer que sobrevivia. Pois nada do que vivia até então se assemelhava à condição pura e por ela gerada na escuridão só de suas crenças. Marcelo Oliveira não havia se livrado da escravidão de sua coerência. Em sua mente, solta, tudo se permitia, tudo se realizava.
Aos poucos, a confiança depositada no treinador se desfez sob o sol e a chuva, fundindo sua obediência numa única tonalidade cinzenta, e sob as calhas permitiu-se escurecer. Começou a definhar, entregando-se aos efeitos do tempo, sem que a bola rolasse.
No clube, todos se referiam a ele como se já estivesse morto. E todas as manhãs, o presidente do clube o defendia e o protegia, falando-lhe como se fala a um cão amigo, embora sem ter sequer a esperança da resposta ou reconhecimento de que um cão é capaz. Nada lhe vinha como esperança além do hábito.
Mas Paulo Nobre falava sem esforço, com a mesma doçura dos primeiros dias, evitando perguntar-se se o fazia para evitar seu próprio silêncio ou se para preencher com suas palavras a desesperança que dele parecia emanar.
Sem que outros pudessem ouvir, por trás dos cabelos ralos e quase brancos, por trás da pele apergaminhada, por trás da espessa barreira dos ossos, uma ideia de jogo cheia de eficiência e plasticidade tecia-se como sinfonia no cérebro de Marcelo. Nunca mais ele havia se expressado de forma clara e perceptível. Nunca mais ele havia pensado para os outros. Pensando só para si, seguia o fio sinuoso e inquebrantável dos seus desejos. A administração do elenco, seu estilo de jogo, que haviam sido sua forma mais louvável de treinamento, tornava-se o martírio de sua profissão. E ali parado, imóvel à beira do campo, Marcelo criava e revivia, uma após a outra, as imagens de sua longa narrativa.
Um diretor do clube – forma convocada para validar o que outros já haviam dito – tentou convencer Paulo Nobre de que era inútil dispensar tamanho cuidado ao enfermo. “Se Marcelo tivesse consciência de seu estado”, disse em voz autoritariamente penosa, “desejaria sair. Desejaria libertar-se da prisão de suas convicções, de sua função na instituição”.
Mas Marcelo não desejava o fim. Assim como não desejava livrar-se de seus métodos. Esse time que, sem movimentação, atrofiava-se aos poucos sob o seu comando. Seria necessário ocupar-se dele, vingar seus alarmas, suas deficiências, seus sintomas, lutar diariamente para atender a fome inesgotável de títulos, protegê-lo. Antes da última conquista havia sido imperioso servi-lo, e às suas exigências. Talvez lhe fosse mais árduo que agora, mas o desempenho visto em campo lhe serve como único parâmetro.
De alguma forma, parece que Marcelo não tem consciência de seu estado. Mas isso, não porque estivesse impedido de percebê-lo. E sim porque, na longa travessia na qual seu pensamento estava empenhado, o fato de não exercer um bom futebol parecia menor e consequência de estar distante, excluído.
Jamais Paulo Nobre suspeitaria da intensa inquietação que o habitava. O técnico não mais dormia, seu estado era um só. E nesse estado, de absoluta entrega e absoluta atenção, ele mudava de ambiente e de tempo, dialogava com os vivos e interagia com o passado, jogava como nunca havia jogado, aos céus voava em glória alcançada.
Longas vezes, enfastiado talvez de tanta agitação, o cérebro de Marcelo deixava-se ficar, girando ao redor esperançoso de um ideal, aprumando-lhe as formas e os sentidos, tão intenso como se a vida não lhe tivesse sido dada ali, mas apenas explodisse naquele momento, carga milenar de emoção que desde sempre trazia consigo. Erguiam-se então na pálida atmosfera do campo as invisíveis glórias, e gritos de gol surgiam ensurdecedores no cérebro de Marcelo. Sem que houvesse o som de cornetas que o cercavam.
Os últimos jogos haviam devorado a segurança do cargo de treinador. Paulo Nobre se vira obrigado a pensar numa troca. Um novo comandante tornara-se uma opção inevitável. No entanto, como nos primeiros dias, ainda lhe parecia possível reverter o destino. Ele continuava a acreditar no professor.
Acreditava, em verdade, no homem que havia antes, e que ele teimava em sobrepor a esta situação cada dia pior e mais pobre, como se carregasse um fardo.
– Que mais posso eu fazer? – perguntava-se no distanciamento entre a melhora do time e sua convicção.
Um sopro quente derramava-se sobre os pensamentos de Marcelo, naquele dia em que, pela primeira vez depois de tanto tempo, sentiu que o fim se aproximava. Desobstruíram-se os ouvidos, sons alheios aos seus chegaram como vaias, gritos de burro em cantoria.
O fio do pensamento do treinador lançou-se para tal desfecho, destino.
Paulo Nobre, em sua cadeira na sala da presidência, ainda quis estender a mão ao treinador. Não foi preciso. Antes mesmo de fitá-lo, soube que estava sozinho no comando. Recolheu a mão ao colo e deixou-se ficar. O sol se pôs.
Só então Paulo Nobre resignou-se.