A Vida Como Ela É #1 A mulher do próximo

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*por Victor Faria

Apareceu na sinuca e fez a pergunta:

– Vocês viram a besta do Gouveia?

Um sujeito, que passava giz no taco, respondeu:

– Não vejo o Gouveia há uns duzentos anos!

Mas um outro, que chegava, indaga:

– Hoje não é domingo? – E insistiu: – Domingo é o dia em que ele se encontra com a mulher do despachante.

Então, Arlindo, que também era despachante, teve que admitir:

– “É mesmo! É mesmo!”. E, de fato, aos domingos, o Gouveia era uma figura impraticável. Desaparecia sem deixar vestígios. Mas os amigos, os mais íntimos, sabiam que ele estava em alguma parte da Zona Sul, às voltas com uma trintona que, segundo ele próprio, era sua mais recente paixão, visceral e imortal.

Largava negócios, compromissos, outras mulheres, para se meter num apartamento em Copacabana, que um amigo lhe emprestava, ou melhor, alugava, numa base de duzentos reais por vez. Mas era um big apartamento, com geladeira, televisão, banho quente e frio, vista para o mar, o Gouveia reconhecia:

– Vale as duzentas pratas e até mais!

Arlindo saiu da sinuca, furioso: – “Ora pinoia!”. Fez os seus cálculos: o romance do Gouveia com a mulher do despachante começava às quatro da tarde. Mas a partir das sete da manhã o Gouveia já não atendia o telefone, a pretexto de que o amor exige uma concentração prévia e total. Conclusão: só reaparecia, para o mundo, às onze da noite, meia-noite. Cercado de amigos, dizia:

– Vocês não se admirem se, qualquer dia, eu sair do apartamento de rabecão!

Naquele dia, o Arlindo tinha que resolver um assunto urgente com o Gouveia; e dramatizava: – “Assunto de vida ou morte!”. Mas o fato é que teve de esperar que o tempo passasse. Por volta das onze, aparece na sinuca. Dez, quinze minutos depois, surge o Gouveia, Arlindo atira-se:

– Até que enfim, puxa! Vamos conversar, vamos bater um papo!

Gouveia, cansado, bocejando e com sono, queria sentar-se, conversar tomando cerveja. E, então, caminhando lado-a-lado, Arlindo começou:

– Tens confiança em mim?

Admirou-se:

–Por quê?

– Tens?

– Tenho, claro.

Pararam na esquina. Arlindo puxa um cigarro e o acende, continua:

– Bem. Se tens confiança, tu vais me dizer o seguinte: quem é essa mulher do despachante? Chama-se como? Eu conheço? Fala! Tu nunca me escondeste nada! Quero saber, preciso. Pausa. Finalmente, o Gouveia balança a cabeça:

– Tenha santa paciência, não abro a boca pra falar dessa senhora. É um caso sério, muito sério, que pode acabar em tiro, morte, o diabo. Desculpa, mas esse negócio de identidade é espeto.

Arlindo respira fundo:

– Quer dizer que você não diz?

E o outro, firme:

– Não.

Arlindo põe-lhe a mão no ombro:

– Já que você não fala, falo eu. Tua distinção é inútil. Eu conheço, sei quem é a mulher.

– Sabe?

– Sei. Perfeitamente. Sei.

Nova pausa. Gouveia arriscou:

– Quem é?

E o outro, baixo, sem tirar-lhe os olhos:

– Minha mulher. Sim senhor, minha mulher, sim.

Gouveia recua, lívido:

– Não, não!

Mas já o outro, rápido, o agarra pela gola, em cólera contida, continua.

– Hoje, logo após o almoço, ela me disse que iria ao jogo, ver o Fla-Flu no Maracanã. Não sou muito ligado nessa coisa de futebol, mas já no boteco mais próximo, descobri que a partida seria disputada em Brasília. Então soube que a tal mulher do despachante era a minha. E o que o traído sou seu.

Gouveia nega:

– Juro! – E repetia: – Juro!

Quis desprender-se, num repelão selvagem. Mas o outro, muito mais forte, o subjugou, com uma felicidade apavorante. Gouveia começou a chorar. Pedia: – “Não me mate! Não me mate!”.

– Olha, seu cachorro: não vou matar ninguém, nem a ti, nem a ela. Gosto demais de minha mulher. E gosto tanto que não te mato para que ela não sofra. Mas quero que saiabas o seguinte. Estás ouvindo?

– Sim.

E Arlindo:

– Minha vingança é a seguinte: daqui por diante, sempre que te encontrar, seja onde for, vou te cuspir na cara. Começando agora.

Era tarde e a rua estava deserta. Foi uma cena sem testemunhas: como um hipnotizado, Gouveia não esboçou um movimento de fuga, nada. E, até, instintivamente, ergueu a cabeça, pareceu oferecer o rosto. Viu Arlindo afastar-se tranquilo e realizado, e ficou em pé, na esquina, com a saliva alheia a pender-lhe da face, elástica e hedionda. Saiu dali desvairado. Perguntava a sim mesmo: – “E agora? E agora?”. O que havia, no mais profundo, era a certeza de que o outro iria persegui-lo, a cusparadas, até a consumação dos séculos. Nessa noite não dormiu. De manhã, com o olho rútilo, o lábio trêmulo, recorreu a amigos comuns. Contava o episódio e pedia conselhos. Um genioso foi taxativo:

– Se um sujeito me cuspisse na cara, eu dava-lhe logo um tiro!

Gouveia replicava:

– Mas eu lhe tomei a mulher! Não compreende? A mulher!

E o amigo:

– E daí? Não serás o primeiro nem o último a dar em cima da mulher do próximo! Ninguém é perfeito, carambolas, ninguém!

De todos os conselhos recebidos, o mais ponderado foi de seu tio. Eis que sugeriu o velho: “Emigra, rapaz! Vai pra China, Arábia! Se não tens coragem de reagir, a solução é partir!”.

Bem que gostaria de fugir, desaparecer. Mas era um fascinado. Sempre que via o rival, plantava-se no meio da rua e o impulso da fuga morria nas profundezas de seu ser. O outro vinha e, publicamente, cumpria o castigo, sem que Gouveia, ao menos, baixasse a cabeça ou desviasse o rosto. Mas o pior foi um velório de um amigo em comum: Arlindo apareceu e, sem menor respeito pela cerimônia, veio em sua direção.

Gouveia ainda tentou apelar:

– Aqui, não! Aqui, não!

Mas Arlindo, implacável, cuspiu-lhe ainda uma vez. Era demais. Alucinado, Gouveia correu de lá. Mais tarde, em casa, meteu uma bala nos miolos.

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