Por Luiz Felipe de Carvalho
Começou com coisas simples. Por exemplo, em seu escritório tinha mais de dois mil CDs, herdados de seu pai. Sempre sofria para escolher o que ouvir, e às vezes perdia mais tempo escolhendo do que de fato ouvindo. Então, certa vez, resolveu escolher por sorteio. Usou um aplicativo de celular, sorteou primeiro o número de uma das fileiras, depois dentro da fileira sorteou outro número, e pronto, estava decidido o que iria ouvir. Se sentiu uma idiota, afinal música é estado de espírito, nem tudo se encaixa em todo momento. Mas se sentiu, paradoxalmente, mais livre, deixando a escolha para o acaso. Acabou ouvindo coisas que há tempos não ouvia, que nem lembrava mais que existiam, discos que não seriam sua escolha natural. Passou a usar o método em sua escolhas culturais de maneira geral. Por exemplo, para escolher que filme veria. Selecionava alguns em que estava interessada, e sorteava, sem sofrer do dilema da escolha. Livros, a mesma coisa. Vários esperavam por sua leitura, recebidos de presente, comprados em sebos, se amontoavam, porque o tempo era sempre mais escasso do que sua fome. E aquela dor que sentia quando pegava um em detrimento de outro, se foi. Agora não era ela que escolhia: era o acaso.
Aquilo era bom. Toda a angústia que sentia, pela certeza implacável de que sua vida seria pouca para tudo que queria ouvir/ver/ler, meio que desapareceu. Sim, a vida dela continuaria curta demais, mas ao menos agora se sentia melhor em relação a tudo que deixaria para trás. Em verdade achou aquilo tão fascinante, e tão simples, que aos poucos começou a estender a outras áreas de sua vida, mesmo as mais importantes.
Viajar, para ela, era importante. Foi a primeira vez que usou os sorteios para algo além de escolhas culturais. Queria viajar dentro do Brasil, então sorteou um entre os estados brasileiros. Deu Acre na cabeça. Certamento nunca escolheria uma viagem para o Acre. Mas acabou adorando Rio Branco, passou dias lindos na cidade, depois ainda estendeu a viagem até Mâncio Lima, lá na ponta esquerda do mapa do Brasil, e de quebra foi até Xapuri, terra de Chico Mendes. Não sentiu nenhuma falta de Porto de Galinhas, nem de Búzios, nem de Porto Alegre, nem de nenhum dos outros lugares para onde costumava viajar. Porque não havia arrependimentos em seu novo modo de vida. Havia, isso sim, a tentativa de aproveitar intensamente o que a sorte havia lhe lançado.
Já tinha feito uma faculdade, de Gastronomia, e trabalhava na área, em um restaurante de hotel. Mas não tinha mais o mesmo prazer em cozinhar de quando escolheu a profissão. Resolveu fazer outra faculdade, deixando desta vez a escolha para o aleatório. Chegou a pensar em sortear apenas dentro da área de Humanas, mas resolveu ser fiel à sua nova filosofia, e sorteou dentre todos os cursos. Sentiu um gelo no estômago quando viu que o número sorteado correspondia ao curso de Ciências Contábeis – provavelmente o último que escolheria de maneira consciente. Mas foi em frente. Foi a melhor aluna possível durante os quatro anos de curso, e se formou aos 36 anos. Fez o caminho inverso daquele que aparece em filmes e novelas, e abandonou a carreira na gastronomia para abrir um escritório de contabilidade. Ganhou uma nova carreira. E, durante a faculdade, ganhou um marido.
Não que tenha sido assim o casamento mais natural do mundo. Alexandre foi sorteado entre alguns flertes e paqueras, inclusive desbancando Fernando, a escolha mais lógica por ter muito mais coisas em comum com ela. Mas ela tinha apostado na lógica por boa parte de sua vida, e não tinha dado muito certo. Já a sorte vinha lhe proporcionando boas experiências há algum tempo. E de fato o casamento era muito feliz. Alexandre, claro, conhecia a idiossincrasia de sua esposa transformar a vida em uma imensa rifa. Mas não fazia ideia de que ele mesmo era fruto de um sorteio. Ela chegou a sortear se devia ou não contar a ele. Como o sorteio deu “não”, nenhuma culpa lhe acometia.
Certa manhã, durante o café, disse ao marido:
- Tive um sonho horrível. Sabe aquele deputado que de vez em quando aparece no programa da Luciana Gimenez e no CQC? Aquele que fala um monte de absurdos?
- Acho que sei, sim.
- Então, sonhei que ele tinha sido candidato a presidente, e que tinha ganhado a eleição.
- Credo, amor!
- Pois é. E o pior: eu tinha votado nele, por sorteio.
- Meu amor, você sabe que eu entendo essa sua maluquice, e respeito, e às vezes até embarco na sua onda. Mas tem limites. Imagina se todo mundo resolve escolher seu candidato a presidente por sorteio?
O narrador, neste momento, interrompe a narrativa, e completa: talvez fosse melhor, meus queridos. Talvez fosse melhor.