Por Victor Faria
Todos aqueles homens e mulheres ali nas arquibancadas parecem enquadrados num submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros do perverso sortilégio do ascenso. A luz circular do refletor envolve o goleiro e a bola, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos ópticos.
Há momentos em que o movimento da bola ganha uma qualidade profundamente humana. O goleiro sempre pálido à luz de cálcio. Parece um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de coreografias, de sugestões – a origem dum mundo misterioso e rico. Fora do lance de gol pesa um silêncio grave e pesado.
Eduardo Martini lamenta-se. É alto, desengonçado, careca e vive em conflito com os homens. A partida parece descrever tais palavras em dolorosa estampa. Pois, que assim seja então. Para ele, pobre goleiro, não há felicidade no exterior; tudo terá de ser baseado dentro de si. Tão somente no mundo ideal de seu ofício é que poderá achar a alegria de evitar um gol.
O goleiro sofre com o ataque rival, o travessão estremece.
Num dado momento as mãos do goleiro se imobilizam. Depois caem como duas asas cansadas. Mas, de súbito, ágeis e fúteis, começam a brincar no ar. A partida é movimentada. A aplicação tática, no entanto, é uma superfície leve, que não consegue esconder o desespero que tumultua nas profundezas. Não obstante, o claro jogo continua. A zaga se esforça em ter a alma leve, apesar de atenta e preocupada. É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas, de repente, uma jogada ensaiada rompe todas as nossas barreiras, nos levam adiante em movimentos ilusórios e num estrondo ameaçam a meta em agitado desalento.
O goleiro se transfigura. As suas mãos golpeiam agitadamente o ar como um animal selvagem que corre perigo. A bola para no ar, enche de expectativa o público, e para cada uma daquelas pessoas do submundo ela tem uma significação especial, conta uma história diferente.
Quando o goleiro a alcança com as pontas dos dedos, as luzes o miram. Por alguns rápidos segundos há como que um hiato, e dir-se-ia que os corações param de bater. Silêncio. Os presentes sobem à tona da vida. Desaparece o mundo mágico e circular formado pela luz dos refletores. O rosto do goleiro está agora voltado para a plateia, sorrindo lividamente, como um ressuscitado. O fantasma de antigos dramas fora exorcizado. Do lado visitante rompem tímidos aplausos.
Dentro de alguns instantes sua figura retornará ao anonimato, suscetível a qualquer desventura ou falha, e a bola retornará ao círculo inicial.
D. Margarida tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucam os calos.
Não faz mal. Estou no camarote. Ninguém vê.
Mexe os dedos do pé com delícia. Agora sim se sente à vontade para ver como ele está jogando, ele, o Eduardo. Parece um sonho… Um estádio desse tamanho. Milhares de pessoas em trajes tricolores – todos parados, estupefatos, mal respirando, dominados pela atuação de seu filho, pelo Eduardinho.
D. Margarida olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali está ele ao seu lado, pequeno, encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra, a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica ridículo nesse uniforme xavante.
Ela esquece o marido e olha para o filho. Admira-lhe as mãos, aquelas mãos, esguias e ágeis. E como a posição que Eduardo joga é difícil demais para ela compreender, sua atenção borboleteia, pousa no alambrado, no banco de reservas, na cabeça do bandeirinha lá embaixo e depois torna a deter-se no filho. E nos seus pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo Eduardinho é um bebê de quatro meses que acaba de fazer uma descoberta maravilhosa: as suas mãos… Deitado no berço ele contempla aquela coisa misteriosa, solta sons de espanto, mexe os dedos dos pés, com os olhos sempre fitos nas mãos…
De novo D. Margarida volta ao triste passado. Lembra-se daquele horrível quarto que ocupavam no inverno de meados dos anos 80 na cidade de Feliz. Quis o destino que tudo parecesse irônico. Foi naquele tempo que Inocêncio começou a beber. O frio foi a desculpa. Depois, o coitado tinha perdido o lugar na fábrica. Andava caminhando à toa o dia inteiro. E vá cachaça! Ele voltava pra casa fazendo um esforço desesperado para não cambalear. Mas ela não se abatia. Tratava o marido como se ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama. Dava-lhe café bem forte sem açúcar, voltava à máquina de costura e ficava pedalando horas e horas. Os galos já estavam cantando quando ela ia se deitar, com os rins doloridos, os olhos ardendo. Um dia…
De súbito, os alaridos da torcida a trazem de volta. Ao seu lado Inocêncio bate palmas de incentivo, vibra a cada lance, sempre de boca aberta, os olhos cheios de lágrimas, pescoço vermelho, o ar humilde. Eduardo faz defesas que enervam o público, sorri, retarda o início do jogo.
O suspense torna a submergir a plateia. Sua atuação envolve os demais torcedores. Alguns xingamentos ressoam, saltam como projéteis sonoros.
Como foram longos e duros aqueles anos! Inocêncio sempre no mau caminho. Eduardo crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os olhos; a dor nas costas aumentando, Inocêncio arranjava empregos de ordenado pequeno. Mas não tinha constância. O diabo do homem era mesmo preguiçoso.
O pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até graça naquele homenzinho encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem jamais deixar de ser criança. No fundo ela aceitava sua sina. Trabalhava para sustentar a casa, pensando sempre no futuro de Eduardo. Era por isso que a Singer trabalhava dia e noite.
Mas D. Margarida, por um instante, esquece o passado. Tão bonita a partida que Eduardo está fazendo agora… E como ele se entusiasma! O suor lhe cai sobre a testa, os braços dançam, as mãos dançam… quem diria que aquele moço ali, famoso por ter feito um gol da própria meta, que já recebeu aplausos de toda a gente, doutores, oficiais, capitalistas, políticos… o diabo! – é o mesmo menino que andava descalço brincando na água da sarjeta, correndo atrás de bola, atrás da banda de música da Brigada Militar…
De novo uma chance de gol. As vaias. Eduardo levanta os olhos para o camarote da mãe e lhe faz um sinal breve com a mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando um brilho particular. D. Margarida sente-se sufocada de felicidade. Puro contentamento. Tem ímpetos de erguer-se e gritar para o povo: “Vejam, é o meu filho! O Eduardo. O Eduardinho! Fui eu que lhe dei de mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para sustentar a casa; pagar o colégio. Com estas mãos, minha gente. Vejam! Vejam!”.
O jogo está quase em seu final. E Eduardo passa a contar em terna surdina os minutos de acréscimo.
No fundo do camarote Inocêncio medita. O filho sorriu para a mãe. Só para a mãe. Ele viu… Mas não tem direito de se queixar… O rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez. Quando a torcida exalta Eduardo, sem saber está exaltando também Margarida. Cinquenta por cento das palmas (ou vaias) devem vir para ela. Talvez sessenta. Se não fosse ela, era possível que o rapaz não desse pra nada. Foi a energia de Margarida, a fé de Margarida que fizeram dele um grande jogador.
Na sombra do camarote, Inocêncio sente que ele não pode, não deve participar daquela glória. Foi um mau marido, um péssimo pai. Viveu na vagabundagem, enquanto a mulher se matava no trabalho. Ah! Mas como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a mulher! Às vezes, quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar tão confiado, tão tranquilo, tão puro, que lhe vinha uma vontade de chorar. Jurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a si mesmo emendar-se. Mas qual! Lá vinha o outro dia e ele começava a sentir aquela sede danada, aquela espécie de cócegas na garganta. No fim das contas ele sabia que não era nenhum santo.
Inocêncio contempla o filho. Eduardo não puxou pra ele. A cara do rapaz é bonita, franca, aberta. Puxou pra Margarida. Que belas coisas o futuro lhe reservou. Daqui para diante é só subir. A porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente consegue abri-la… Maravilha.
Lágrimas brotam nos olhos de Inocêncio. Diabo de ofício triste! O Eduardinho devia ter escolhido uma outra posição.
Ele então recua para a sua sombra. Volta aos seus pensamentos amargos. E torna a chorar de vergonha, lembrando-se do dia em que, já mocinho, Eduardo lhe disse aquilo. Ele quer esquecer aquelas palavras, quer afugentá-las, mas elas lhe soam na memória.
Ele tinha chegado bêbado em casa. O filho olhou-o bem nos olhos e disse sem nenhuma piedade:
– Tenho vergonha de ser filho dum bêbado!
Aquilo lhe doeu. Foi como uma facada, dessas que não só cortam as carnes como também rasgam a alma. Desde esse dia ele nunca mais bebeu.
No saguão do estádio, terminada a partida, Eduardo recebe cumprimentos dos admiradores, alguns torcedores o contemplam deslumbrados. Um senhor gordo e alto, muito bem vestido, diz-lhe com voz profunda:
– Estou impressionado, impressionadíssimo. Sim senhor!
Eduardo enlaça a cintura da mãe:
– Reparto com minha mãe os elogios que recebi essa noite… Tudo que sou devo a ela.
– Não diga isso, Eduardinho!
D. Margarida cora. Há no grupo um silêncio comovido. Depois rompe de novo a conversa. Novos admiradores chegam.
Inocêncio, de longe, olha as pessoas que cercam o filho e a mulher. Um sentimento aniquilador de inferioridade o esmaga, toma-lhe conta do corpo e do espírito, dando-lhe uma vergonha tamanha, maior que a vitória conquistada pela equipe xavante.
Afasta-se na direção da porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes da praça, as árvores paradas… Sente uma enorme tristeza. A tristeza desalentada de não poder voltar ao passado… Voltar para se corrigir, para passar a vida a limpo, evitando todos os erros, todas as misérias…
O porteiro do estádio, um mulato de uniforme do tricolor de aço, caminha desolado de um lado para outro, sob a marquise.
– Linda noite! – diz Inocêncio, procurando puxar conversa.
O homem olha o céu e sacode a cabeça, um pouco contrariado.
– Linda, não fosse o outro. Um corpo fechado na noite de hoje.
Pausa curta.
– Não vê que sou pai do jogador do Brasil de Pelotas.
– Pai? Do goleiro?
O porteiro para, observa Inocêncio com um ar incrédulo e diz:
– O rapaz tem os pulsos firmes. É bom de bola.
Inocêncio sorri. Sua sensação de inferioridade vai-se evaporando aos poucos.
– Pois imagine como são as coisas – diz ele – Não sei se o senhor sabe que nós fomos muito pobres… Pois é. Fomos. A vida tem coisas engraçadas. Um dia… o Eduardinho tinha seis meses… umas mãozinhas assim deste tamanho… nós botamos ele na nossa cama. Minha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. Pois o senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas carninhas. O senhor sabe, quando a gente fica neste dorme não dorme, fica o mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia levantar e ir dormir no sofá. Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal aberto, preocupado com o menino. Passei a noite inteira em claro, com metade do corpo para fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabeça pesada. Veja como são as coisas… Se eu tivesse esmagado as mãos do Eduardinho hoje ele não estava aí fazendo essas defesas milagrosas… Não podia ser o goleiro que é.
Cala-se. Sente agora que pode reclamar para si uma partícula de glória do seu Eduardo. Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho. O porteiro presta atenção em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do bolso das calças uma nota amarrotada de dez reais e mete-a na mão do mulato.
– Para tomar um traguinho – cochicha – Não faz passar tristeza, dor, mas afaga, aquece, alivia.
E fica, todo excitado, a olhar para a sua estrela.
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