Por Victor Faria
Fui chamado às pressas, na noite da última quinta-feira, ao mítico estádio do Boca Juniors. As atenções de todo o país estavam voltadas ao Superclásico pela Copa Libertadores da América. Não havia nada nos noticiários além daquele encontro. Crise econômica, escândalos políticos, fofocas célebres e noticiais, nada acontecia além da bola, do jogo.
Em casa, não acompanhava o épico embate. Não era necessário. A balburdia dos transeuntes narrava os feitos em campos futebolísticos. E por isso não me interessava. Confesso ter ficado surpreso com a repentina ligação de Emilio Renzi.
Cheguei à cancha xeneize em meio ao contra fluxo dos torcedores. A atmosfera era de terror e indignação, todos eram suspeitos e nenhum culpado. As feições dos hinchas se confundiam em acusação e culpa. Em meio à fanática torcida, pude reconhecer Rafa di Zeo, não eram olhos amistosos os que me fitavam. Acelerei o passo antes que ele pudesse indagar sobre minha presença.
Encontrei Emilio Renzi na entrada de La Bombonera. Continuamente ele procurava rastros do passado no presente, em busca de indícios de uma violência fundadora que sobrevive até os dias de hoje. Dizia ele ser esta uma maneira muito de acordo com as tradições argentinas.
Não foi preciso nem perguntar sobre o ocorrido, sem demora os comentários se transformavam em versões e conjecturas e ninguém mais falou de outra coisa. Naquele bairro, assim como em todos os bairros da província de Buenos Aires, havia mais novidade em um dia do que em qualquer outra grande cidade em uma semana, e a distância entre as notícias da região e as informações nacionais era tão abissal que os habitantes podiam ter a ilusão de viver uma vida interessante.
O estádio possui uma arquitetura fascinante. As arquibancadas possuem camadas geológicas de acontecimentos extraordinários que voltam à superfície sempre que ocorre um gol. Não é preciso ser um torcedor para entender o enredo orquestrado pela massa. Naquele instante, nas cadeiras vazias, era possível apenas sentir o sopro de um vento sul.
Era a primeira vez que retornava ao estádio desde os incidentes frente ao Racing, em 1983. Roberto Basile fora atingido por um sinalizador assassino. Os culpados foram condenados e absolvidos, soluções do sistema judiciário, mas naquele dia o jogo não fora paralisado.
Nos dirigimos ao centro do gramado, alinhados estavam dirigentes de ambos os times, defensores de seus próprios interesses, indagavam fervorosamente Dário Herrera, árbitro infortunadamente escolhido, que deveria rapidamente tomar uma decisão. Devia ser um juiz de um tribunal, capaz de julgar uma grande causa, mesmo sem reunir provas ou artifícios de conclusão. Por sugestão da Conmebol, deveria ser dele a palavra final.
Estranho também era que não havia ninguém da imprensa especializada. Clarín e La Nación não mandaram seus representantes, ou se sim, estes já haviam pra casa retornado. Em dias atuais é possível verificar o ocorrido mesmo longe do verificado. A rapidez das informações sugere uma forma de jornalismo que não mais se preocupa com a veracidade.
Fomos em direção ao túnel, local do atentado, que levava aos vestiários. Um cheiro forte de pimenta tomava conta do espaço. Especialistas depois indicaram se tratar de uma mistura de pimenta caiena e ácido para fermentação. Uma solução de mostacero diretamente aplicada em olhos rivais. Antes que eu pudesse pegar uma amostra fui indagado pelas autoridades locais. Éramos da imprensa, eu e Emilio, e por isso não podíamos mexer na cena do atentado. Fomos perguntados sobre a ausência do comissário Croce, antigo parceiro de nossas investigações. Dissemos não saber. Era confidencial. O comissário estava internado num hospício e apostara em nós, uma dupla de repórteres, para apurar e seguir com as investigações. Dentro da lei é certo que nenhum de nós estava.
Devido a resposta que demos fomos retirados do campo. Não nos deixaram seguir com a investigação dentro do estádio. Aparentemente as conclusões devem seguir um plano coletivo em que todas as alternativas devem suplantar uma única resposta. De acordo com todos os envolvidos, mesmo estando longe da verdade.
Por fim saímos do estádio, alguns torcedores ainda aguardavam novidades da tragédia do lado de fora. Mauro Martin confabulava com seus pares acerca de novidades, não sei se buscava um culpado ou o criava. As implicações do dia seguinte certamente tinham a ver com aquela conversa entre os barras bravas. Com sua popularidade e a inveja que suscitou entre os homens, poderia ter feito o que bem entendesse, mas o acaso, que na verdade fora o que trouxera até aqui, foi sua perdição. Ao fundo era possível notar num muro a inscrição “Boca es Pueblo” , cada vez mais distante da ideologia atual dos mandatários.
O dia seguinte, que de acordo com minha insônia poderia ser considerado como ainda o mesmo, amanheceu com novidades. Câmeras instaladas no estádio flagraram o ataque e rapidamente repercutiam em todos os canais de TV e rádio. Já era possível verificar o ocorrido e consequentemente o culpado. Os programas matinais traziam somente este como assunto e por horas discutiam sobre a punição ao clube, à torcida, os envolvidos e encarregados. Quanto maior a repercussão mais difícil a solução e mais longe se chega da verdade.
Outro fato novo era internação de um dos jogadores, Sebastián Driussi, internado no hospital com uma inflamação no cérebro. Era de lá que Emilio me ligava, com a tarefa de recolher o depoimento antes que a notícia se alastrasse. Considerando ser esta uma tarefa individual não me desloquei ao lugar indicado, preferi o periódico de bares, centro nervoso de informações e novidades.
Nas ruas o assunto tomava proporções de escândalo e descaso. Diversas eram as denúncias e os acusados, cada um com sua versão, a cada notícia um novo culpado. Especulação imobiliária, motivações políticas, confabulações inimagináveis. Em toda questão um mínimo de verdade.
Por volta do meio-dia chegou Renzi trazendo o relato do jogador millionario. Não havia nada de concreto em seu depoimento, muito pelo contrário. Talvez sob efeito de algum calmante, ou mesmo ainda pelos efeitos do spray de pimenta ele dizia que: “A noite e a escuridão se tornaram idênticas, um feixe de pimenta passou em minha frente, em ziguezague, tornando a claridade uma busca ardente. De repente um fantasma branco cruzou minha fronte e outra vez em meio às sombras até que tudo se apagou. Não havia mais nada além da escuridão. Num instante minha vida se eclipsou.” Mais tarde deduzimos que não seria este um caso fantasmagórico, a branca aparição era na verdade um drone, uma travessura tecnológica e juvenil, uma eventualidade.
É preciso reconhecer que, às vezes, o faro jornalístico nos trai ou simplesmente falha. Nas horas seguintes seguimos no bar, afinal, as melhores conclusões são acompanhadas de teor alcoólico.
Mais tarde, mas não de maneira surpreendente, recebemos a notícia da confirmação do culpado. Sem maiores indícios de motivo ou causa foi indicado como autor. Basta uma ameaça mais severa para que um homem assuma sua culpa, que se quebre como se de vidro fosse feito.
Não tivemos acesso ao depoimento de Adrián El Panadero Napolitano sobre o ocorrido em La Bombonera. E de fato isso era o menos importante. A intenção e a culpa raramente estão nas mãos do agressor. Há de se convir, nesse caso, que o ato parece advir de ordens superiores, interessantes a dois ou três no máximo, os donos da razão e verdadeiramente culpados. Homens postulados em governos, ministérios e entidades. Ao que tudo indica, pelo menos aos órgãos de imprensa, Adrián seguiu calado. É possível que ele nem soubesse das motivações do enredo, nem mesmo o determinado alvo. Poderia ser qualquer um. A questão era fazê-lo, cumprir ordens mesmo que pareçam aleatórias.
Quanto a nós, o silêncio também se exprime. Afinal os escritores nunca são inocentes, sempre parecem como culpados.