Da fé e da alma

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por Kadj Oman

Eu confesso: sinto falta do Corinthians. De estádio. Já são quase dois anos sem ir. Desde que se tornou impraticável e desconfortável. Desde que passaram a gritar “bicha” no tiro de meta e tirar selfie nos escanteios.

Não sei de onde vem essa falta. Quem não gosta de futebol sempre pergunta, “como?”. Não sei. Como os gatos nascem sabendo mijar na caixa de areia – e porque os cachorros não? Como a maioria da população de São Paulo vota no Alckmin? Tem coisas que vão pra além da lógica, do racional e da razão. Sendo assim, sou Corinthians, nunca deixarei de ser. De certa forma, com todos os absurdos, a gente olha pra trás, vê uma história que começou antes do mundo e sabe que essas coisas todas passam, mas o Corinthians fica. Fica porque ainda tem sua gente.

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Ontem, entretanto, não era jogo em casa. Era jogo fora, era dia de assistir na TV. E assim como no estádio, assistir na TV também tem seus rituais. Eu nunca fui de assistir jogo em bar. Também nunca curti muito assistir em galera. Sempre sentei no sofá com meu pai, no máximo mais alguém, e concentrei tudo na tela, olhos, cabeça, coração. Sou daqueles que não quer levantar pra ir mijar porque tem medo de perder o gol – mas que, quando o jogo tá difícil, tá duro, vai dar aquela mijadinha da sorte. Odeio quem liga durante o jogo. Odeio pedir pizza e ter que descer pra buscar no meio do jogo. O futebol é a fé do ateu, ou pelo menos deste, e ele tem seus rituais.

Falando em jogo duro, ontem foi duro. Duro de assistir. Vi muitos jogos na várzea melhores que Cobresal x Corinthians. Vão falar do começo de temporada, da altitude, “a bola corre mais” e blablabla, mas o fato é que o apagão não foi só nos refletores, foi também técnico. Dois times bem estruturados e minimamente organizados, mas acertando quase nada em termos de passe. A bola mal parava no chão. Na casa da minha mãe, para onde resolvi ir já que em casa não tenho sinal de TV, admito que por horas foi mais interessante observar as arquibancadas (que saudade de arquibancada, viu), pensar sobre o deserto e maquinar paralelos entre El Salvador, o Cobresal e o futebol moderno.

Uma cidade de mineiros, fundada para abrigar trabalhadores. No meio do deserto do Atacama. Ali germina um clube de futebol, como em tantas outras cidades e bairros de trabalhadores pelo mundo. Um clube modesto, um clube pequeno, como a cidade. Trinta anos atrás, um sonho: jogar a Libertadores. Seis jogos e nenhuma derrota – mas só uma vitória. E mais trinta anos até se classificar pra jogar de novo.

De 1986 pra 2016, muita coisa mudou: o estádio, que antes lotava, ainda que com capacidade para humildes 20 mil pessoas, agora tem mais vagas do que torcedores – quase três vezes mais do que o número de habitantes da cidade. A mina está no fim, e com ela se vai aos poucos o futebol. Nada mais simbólico: no meio de um deserto, onde vivem apenas 7 mil almas, sobrevive um estádio – enquanto as determinações econômicas permitem. Ainda que em direções diferentes, El Salvador e o futebol caminham para a extinção: aquela pela falta de dinheiro, este pelo excesso dele.

Em campo, por todo o primeiro tempo de 65 minutos, o goleiro Cuerdo só tomou um susto: quando Lucca baixou o espírito de Marcelinho e pareceu colocar com a mão a bola a centímetros de seu ângulo direito. Passou perto, e foi tudo. Do lado do Cobresal, não muito mais: Benítez corria pela esquerda e cruzava no segundo pau, e a zaga cortava pra escanteio.

A segunda etapa voltou com os times ainda mais iguais em campo. Ninguém conseguia criar nada, e seus meias abertos pela esquerda (Lucca e Benítez) eram as duas únicas almas com alguma inspiração. Pior para o Cobresal que, após disputa pelo alto com Fágner, Benítez tenha caído e sofrido uma horrível fratura no braço direito – que a televisão chilena fez questão de reprisar inúmeras vezes. Com o melhor do adversário fora de jogo e o cansaço em campo dos dois lados, o Corinthians conseguiu pressionar no finalzinho e ganhar um gol de presente depois de Lucca cruzar rasteiro e o zagueiro Escalona desviar contra.

[Divulgação - Corinthians]
[Divulgação – Corinthians]

Da janela, vieram vários gritos de felicidade. Primeiro estranhei: moro numa área de palmeirenses onde era difícil sobreviver em casos de derrota quando adolescente. Depois raciocinei: o bairro passa por um processo de gentrificação gritante, assim como o Corinthians. Os novos-ricos da Vila Romana são também novos-Corinthianos.

Voltei aos olhos pra tela e já estávamos nos acréscimos. A câmera focalizou Lucca. Do alto dos seus 26 anos, cansado, correndo com a cabeça levantada, o cara que apareceu em um vídeo do YouTube quando moleque sendo zoado pelos amigos por conta do rebaixamento do Corinthians deu um sorrisinho de canto de boca. Um sorrisinho de satisfação, de quem sabe que foi o melhor em campo, de quem parecia estar genuinamente feliz de marcar um gol fora de casa na Libertadores e dar a vitória ao time. E de quem sabe também que foi pura sorte – e se sente abençoado pelos deuses do futebol.

No lance derradeiro, o goleiro Cuerdo foi pra área. Assim como durante todo o jogo, deu pra ouvir os gritos das comissões técnicas e dos jogadores orientando os times. Junto com a torcida, de onde vinha um frisson de expectativa típico de um estádio, por alguns instantes me pareceu que o futebol respirava, enquanto eu prendia a respiração. E assim que o jogo terminou e a câmera enquadrou o estádio inteiro deu pra entender por quê: o deserto, o lugar, a arquitetura, as arquibancadas, o clima, a sonoplastia, tudo ao redor parecia transportado de décadas atrás. Parecia Libertadores. Parecia várzea – e por isso parecia futebol.

Pra ser mesmo, faltou só a alma. E, por mais ateu que eu seja, sei muito bem não tem fé que sobreviva sem alma.

Eternamente em vossos corações,

Kadj Oman

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