“The Truth”. Foi com este título digno de um péssimo filme de ação norte-americano que, no dia 19 de abril de 1989, o tabloide The Sun protagonizou um dos momentos mais sombrios de sua história. Quatro dias após a famigerada tragédia de Hillsborough (96 pessoas mortas) o jornal apontou de maneira leviana os supostos responsáveis pelo desastre: Os torcedores do Liverpool, descritos na matéria como bêbados e violentos. Uma versão trash dos fatos, suficientemente falsa para que o lado vermelho da cidade boicotasse este jornal há 25 anos.
Na cidade dos Reds, The Albert é um dos pubs mais populares da cidade. Cachecóis e camisas vermelhas vintage ilustram os muros e até mesmo o teto da “public house”. Alguns frequentadores criticam a atual frequência do local. A reputação de sua cerveja caseira e o astral elevado nos dias de jogos não são os mesmos de outrora, até a sua militância deixou de ser intensa. No entanto, o que ainda chama atenção é que há 25 anos um mesmo cartaz pregado na janela da porta de entrada, tapa a luz de fora com a seguinte mensagem:
“The Truth! 96 mortos. 15 de abril 1989. Hillsborough. Não comprem o The Sun!”.
Este anuncio certamente não é sobre nenhum concerto de Rock mas sim a parodia de uma edição do tabloide “The Sun” do dia 19 de abril de 1989. Um boato em forma de notícia, publicado quatro dias após da tragédia de Hillsborough, em uma das célebres capas da história da imprensa britânica: The Truth (A Verdade). Abaixo da mentirosa manchete, três subtítulos sensacionalistas:
Alguns Torcedores roubaram os pertences dos mortos!
Alguns torcedores urinaram em corajosos policias!
Alguns torcedores bateram nos guardas que tentavam apaziguar a tensão!
Na matéria propriamente dita, os torcedores do Liverpool foram descritos como bêbedos e violentos. Desde a sua publicação, o tratamento mediático da tragédia tem provocado uma revolta generalizada. No Meryside, condado de Liverpool, a comoção foi enorme. O “The Sun” foi rapidamente boicotado pela maioria das bancas de jornal, as quais negaram estocar qualquer exemplar.
Os leitores da região cancelaram a assinatura e se negaram a frequentar as bancas que porventura distribuíssem este “jornaleco”, como bem apelidou Tommy Doran, empregado do Albert Pub, o responsável por ter pregado o velho e surrado cartaz na porta de entrada.
“Chamamos de jornaleco pois aqui a gente se nega a pronunciar o nome desta merda de tabloide”, confessou o inconformado Tommy ao The Guardian.
“Me lembro bem de nossos clientes lendo todos os dias este jornaleco, depois desta matéria caluniosa, as coisas mudaram por aqui. Toda manhã, eu verificava os jornais lidos pelos nossos fregueses, se fosse o tal jornaleco eu rasgava na frente dele e expulsava o maldito!”
Vinte cinco anos depois, as vendas do “Sun” no noroeste inglês ainda continuam insignificantes. Segundo o jornal “The Independent”, o tabloide vende mais de 3 milhões de unidades na Grã-Bretanha, já em Liverpool o jornal caiu para menos de 10 000 exemplares, ou seja, uma perda de 200 000 leitores desde o fatídico ano de 1989.
O boicote ao jornal tem até seu hino. O Never by The Sun, interpretado por Billy Bragg.
Há também um movimento oficial chamado de: “Don’t buy The Sun”, Peter Hooton é o seu fundador e porta-voz, cantor do grupo The Farm e também membro do Spirit of Shankly, uma associação de torcedores do Liverpool, criada em 2008, cuja ambição é expulsar os proprietários norte-americanos do clube: Os senhores George Nield Gillet Jr. e Tom Hicks (co-fundador da Hicks, Muse, Tate & Fürst, empresa norte-americana que formou parceira com o Sport Club Corinthians Paulista de 1999 até 2003).
Um autentico “mala”, como ele próprio se define, Hooton declarou na BBC:
“O boicote ao “Sun” é simbólico e 25 anos depois ele é ainda mais forte. Os moradores de Liverpool nunca vão perdoar este jornal de merda por ter feito acreditar que a culpa da tragédia de Hillsborough fora dos torcedores. Por causa dele, a cidade foi estigmatizada como um antro de alcoolismo e de violência no país. O pedido de desculpas não vai mudar em nada nosso posicionamento”.
Mesmo tom de revolta por parte de Margaret Aspinall, presidenta da Associação dos parentes das vítimas e que perdeu seu filho de 18 anos no incidente:
“Vocês perdoariam Hitler? Alguém perdoaria o ex-ditador Pol Pot? Não somos Deus: Eu nunca vou perdoar estas pessoas. O The Sun? Que Deus perdoa, eu nunca!”
Em julho de 2004, o “The Sun” finalmente fez o seu mea culpa ao reconhecer o “maior e mais terrível erro de sua história”.
Em setembro de 2012, foi a vez de Kelvin MacKenzie, ex-editor do jornal, de reconhecer a culpa diante de uma comissão independente em um processo de 450 000 páginas. Este último revelou, após 20 anos de inquérito, que a polícia teria mentido deliberadamente com o objetivo de aproveitar o contexto do hooliganismo para acusar os torcedores do Liverpooll de serem os causadores da tragédia. Os oficiais responsáveis do inquérito censuraram as testemunhas dando falsas informações à imprensa. David Cameron, Primeiro Ministro britânico, não teve outra escolha senão subir na tribuna do Parlamento e proferir as seguintes palavras:
“Hoje tenho a obrigação, como Primeiro Ministro, de apresentar desculpas às famílias destas 96 pessoas por tudo que passaram nestes últimos vinte e três anos. Em nome do governo e de todo país, quero afirmar que estou profundamente desolado por esta injustiça que perdurou por tanto tempo”.
Alguns minutos após o discurso de David Cameron, Kelvin MacKenzie justificou o erro:
“Eu não tinha como saber se a polícia mentiria e me induziria ao erro. Eu publiquei o artigo com a consciência tranquila e estou chocado com o deslize. Queria apresentar minhas desculpas à população de Liverpool.”
Neste mesmo processo da comissão de inquérito independente, todos souberam que a polícia proibiu o socorro às vitimas dentro do estádio. Ela não permitiu a entrada de nenhuma ambulância para auxiliar os torcedores. O motivo não está claro na conclusão deste processo. 41 das 96 vítimas poderiam ter sobrevivido se as autoridades não tivessem subestimado os riscos. O objetivo era bem claro: Diante da inépcia e negligência das autoridades, a saída foi culpar os torcedores que já levavam má fama pelo hooliganismo. Mas então por que o “The Sun” foi o único a ser demonizado? Kelvin MacKenzie também fez a mesma pergunta: “Eu não era o único redator que acreditou na versão da polícia. O Daily Star também publicou naquele mesmo dia: “Torcedores mortos foram roubados por torcedores bêbados”. O Daly Mail: “Eles estavam bêbados e violentos”. O Daily Express chegou a utilizar a seguinte expressão: “A pilhagem da morte”.
“Por que todo mundo foi contra nós?” Será porque o jornal foi sempre a favor da Margaret Thatcher enquanto que Liverpool sempre fora um reduto do Partido Trabalhista?” Plausível.
Mas as dúvidas seriam esclarecidas pela personalidade do próprio MacKenzie e do seu patrão, o sulfuroso Rupert Murdoch, acusado em 2011, de um escândalo de escutas telefônicas de personalidades britânicas em seu jornal News of the World. Estes homens sempre amaram o cheiro do enxofre, o gosto de sangue e o gemido das pessoas que trepam, sobretudo se a relação for extraconjugal. “Eles inventaram o futuro da imprensa baseada em escândalos”, explicou Harry Arnold, responsável pela matéria do “The Sun” sobre a tragédia de Hillsborough. Depois de anos escondido, o jornalista saiu do silêncio, em 2012, em uma entrevista à BBC:
“Quando eu li o título da matéria: “The Truth”, fiquei constrangido pois não havia escrito isso… Então disse ao MacKenzie: Você não tem este direito!
Antes de concluir ele se lembrou de outro episódio de seu ex-chefe:
“Seis meses após esta famigerada matéria, MacKenzie escreveu um artigo sobre AIDS com a seguinte manchete: “Agora é oficial, sexo hetero não tem como contrair AIDS!
Mais uma de suas verdades…
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Xico Malta, colunista semanal do blog, faz também os programa O Som das Torcidas, onde já falou inclusive do Liverpool, além dos programas Titulares, Central da Memória, Futebol Urgente e Folha Seca dentro da Central 3.
Guilherme dorf disse:
Parabéns Xicão. Para variar, excelente contextualização e profundidade como já estamos acostumados a ver no espaço da C3.
Como não “vivi” a tragédia sempre me interessou o fato dela seguir tão presente mesmo tanto tempo depois. O pouco que eu sei aprendi com o “Febre de Bola” e com as matérias que saíram esse ano.
Acho marcante o fato dos torcedores (não apenas do Liverpool) serem tão intensos nessa luta e sempre penso se existiria algo no Brasil capaz de unir diferentes torcidas.
gABRIEL brito disse:
Muito legal o texto, mostrando como a Veja não é pioneira em antijornalismo e criminalização de tudo que seja popular etc.
Fora isso, a tragédia foi muito conveniente pro choque neoliberal entrar de sola no futebol, higienizar os estádios ingleses e criar um novo padrão de consumo em torno do ato de torcer. Logo depois, veio a Premier League e a venda do capital dos clubes na bolsa de Londres, o que mudou completamente a relação das instituicoes com seus seguidores. Acho que isso também tá no cerne da fraude processual e investigativa de Hillsborough.