A figura do malandro sempre fascinou o cinema. Seja o golpista descarado, como no argentino “Nove Rainhas” e no hollywoodiano “Prenda-me se for capaz”, ou seja o malandro mais ingênuo, de bom coração, os vigaristas e seus truques já renderam filmes memoráveis. No imaginário brasileiro essa figura carrega uma aura de identidade nacional; Macunaíma, nosso herói sem nenhum caráter, e personagens folclóricos como o mineiro Malasartes ou João Grilo, resgatado por Ariano Suassuna em seu Auto da Compadecida – todos eles já eternizados nas telonas – rendem discussões sobre o “jeitinho brasileiro” e seus limites éticos.
Em “Cartas para um ladrão de livros”, logo de início somos apresentados a Laessio, um personagem fascinante e arrebatador. O maior ladrão de livros raros do Brasil, como parece ter orgulho em se proclamar, tem características que seriam um prato cheio para um filme de ficção. Mas estamos diante de um documentário. Ao mesmo tempo em que isso dá uma dimensão maior a sua história, tornando-a ainda mais fascinante, traz também um complicado dilema ético. Para caminhar nessa linha tênue entre glamourizar o crime e apresentar os fatos friamente, o jornalista e diretor Carlos Juliano Barros se transforma em narrador-personagem, conduzindo-nos para dentro do intrigante mundo das obras raras.
Se a premissa parece interessante, com bibliotecas cheias de tesouros desconhecidos e um mercado negro disputado por colecionadores ambiciosos, é difícil imaginar o que poderia ter sido do documentário caso nos deparássemos com um personagem principal menos surpreendente. O ladrão de livros não é um intelectual sisudo, classe média alta, bem nascido e, portanto, grande conhecedor de arte. Laessio é um personagem brasileiríssimo, marginal, que representa a revolta dos excluídos. Homossexual, negro, pobre, suburbano, “um fudido”, em suas próprias palavras.
Uma figura que dificilmente seria associada logo de cara aos tipos de crime que lhe foram imputados.
Sem nunca apelar pra violência, Laessio se aproveitava do descuido com o patrimônio público para realizar seus furtos. A precariedade dos sistemas de vigilância e de segurança das bibliotecas e museus foi percebida quase que por acaso em seu primeiro crime: apaixonado por Carmen Miranda, ele adentrou o MIS – Museu da Arte e do Som – e se deparou com uma revista que trazia a cantora na capa. Percebendo que não havia nenhum controle ou segurança no local, enfiou a revista na mochila e saiu sem olhar para trás, a adrenalina a mil. Dali para frente, nunca mais parou.
A facilidade e o dinheiro fácil podem ter sido uma boa motivação inicial, mas o que acaba por conquistar Laessio é a sensação de estar fazendo algo importante. Frequentando e sendo bajulado nos círculos de colecionadores abonados e pessoas da alta sociedade, ele sente que achou seu talento, aquilo que o diferencia no mundo. Ser o maior ladrão de livros raros no Brasil é uma forma de ser alguém. E, mesmo que nas páginas policiais, Laessio conseguiu imprimir seu nome na história, sair do anonimato. É curioso observar como sua figura é capaz de despertar as mais diversas reações nas pessoas a seu redor. Um funcionário da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, fala sobre ele com indignação, quase não se contendo; já a administradora da mesma Biblioteca alterna entre a raiva e a curiosidade, a revolta e uma dose de afeto. O delegado responsável pela prisão de Laessio parece, de certa maneira, admirar a inteligência de seu “adversário”, ao mesmo tempo em que condena veementemente sua frieza.
O relacionamento entre o diretor e o personagem também é muito bem explorado na tela. As cartas trocadas por eles ao longo dos mais de quatro anos passados entre o único do projeto e o encerramento das gravações nos situam um pouco nessa complexa relação. Carlos Juliano joga agilmente com as palavras, mas sempre arriscando e testando os limites. Até onde deve ser neutro, até onde deve ser amigo? O que pode ajudar Laessio a se soltar mais nas revelações, mas também até que ponto é correto “manipulá-lo” em busca de informações? Aos poucos se estabelece uma relação muito humana e transparente, onde cada um dos personagens parece saber muito bem o que pretende com o filme – e até onde está disposto a chegar para conseguir isso.
“Cartas para um ladrão de livros” é um filme com potencial para ser popular, para ser visto e comentado. Estão ali todos os ingredientes que se fazem presentes em uma boa ficção: há crimes, investigação, personagens fascinantes, uma grande história; há muito humor, tiradas divertidas, mas também há drama, e até mesmo romance. Os personagens riem e choram, nos divertem e nos emocionam. Entretanto, será difícil se desvencilhar de um estigma que persegue os documentários, considerados filmes “para iniciados”, para cinéfilos, ou encarados como algo muito sério e quadrado. Completa injustiça, claro, não somente com o filme de Carlos Juliano, mas também com boa parte da produção documental – que tem sido uma das mais inventivas dentro do audiovisual. Mas é de se imaginar que o filme vá enfrentar dificuldade para encontrar o grande público. O que é uma pena. A história de Laessio merece ser contada. Resta torcer que, ao ser exibido nos canais pagos da Globo – a emissora é uma das das co-produtoras do filme – “Cartas para um ladrão de livros” consiga escapar da empoeirada prateleira onde repousa boa parte da produção documental brasileira.
*Murilo Costa é cinéfilo, cineasta e integrante da bancada do Central Cine Brasil.