O Futebol é cimento, o do chão e o da alma
Cimento. Deve ter um ano, eu li numa entrevista de um jornal português com o escritor brasileiro Sérgio Rodrigues. Cimento. O repórter perguntava se o futebol era bom ou ruim para as relações familiares. E o Sérgio respondeu que era o cimento principal das primeiras alianças entre pais e filhos (cada vez mais mães e filhas também, ele ressalta) pequenos. Cimento. Nunca havia pensado numa expressão melhor.
Cimento porque está lá, estável, velho, desgastado, com aspecto duvidoso, mas estável, cimentado, oras, da forma que passou pelos últimos anos todos e suportará tantos vários outros domingos em que a família se reconhece na saudade do camisa 10 que não existe mais, na raiva uníssona direcionada ao goleiro frangueiro que passa pela chaleira do café, rebate no encosto do sofá e reverbera na tela da televisão, no rádio que vai sendo abafado pelo calor do banho.
E aí vem um cineasta na faixa dos 40-50, duas décadas sem ver o pai na mão e uma nostalgia de Pacaembu na cabeça, com uma ideia dessas, que pega lá no cimento: radicado na Espanha, Sérgio Oksman convida o pai para assistirem a Copa do Mundo juntos, perambulando por São Paulo, e gravando um documentário deste mês de reencontro.
O Futebol, filme que acaba de vencer o Festival É Tudo Verdade e está em cartaz em circuito comercial (Caixa Belas Artes, em São Paulo), tem uma sensibilidade rara. Simão, o pai, é um senhor que ainda trabalha duro, bom de papo, rabugento na medida certa, nostálgico de escalar o Palmeiras da primeira vez com o filho no estádio ou de desafiar, de boteco em boteco, alguém que tenha mais memória futebolística que ele: quem foi o árbitro da final do Paulista do Quarto Centenário?, quero só o árbitro do jogo, quem?
Sérgio, diretor e filho, conduz tudo com paciência e carinho, sugere sem invadir, documenta bancando uma narrativa imprevista, que faz chover no reencontro no Estádio Municipal, que traz a doença em plena chegada do fatídico 7 a 1, que tem como cimento segundo – do primeiro já falamos – o do cinema, o da vontade do idealizador em fazer cinema, independente de questões outras.
Sem heróis nem romantismo, O Futebol é a vida como ela é, um almoço de domingo lembrando derrotas do Palmeiras. Umas mais doídas, mais surpreendentes que outras, principalmente quando remetem à primeira sola do pé, ainda pequeno, no chão frio do quintal.