Por Lucas Franco
A conquista da terceira divisão chilena não garantiu o acesso à segundona ao Deportes Valdivia, de cidade homônima, a 853 km ao sul de Santiago. A bizarra saga em que o futebol é coadjuvante evidencia a crise moral no futebol chileno. El Torreón, como é alcunhado o time sulista, logrou o primeiro título da sua história no dia das mães, oito de maio. A celebração, no entanto, durou pouco: em um mês o clube deve pagar “taxa de inscrição” milionária se quiser subir de divisão: 1.200.000.000 pesos chilenos, equivalente a pouco mais de R$ 6 milhões.
O futebol decidido em campo pela última vez
Não fazia sol. Não era corriqueira a penetração de luzes densas em tão austral, úmido e chuvoso rincão do planeta. Se o clima podia afetar o humor, os sorrisos coloriam as nuvens cinzas. Era oito de maio de 2016, dia das mães em todo o mundo, inclusive na longínqua Valdivia, cidade a 853 km ao sul de Santiago do Chile. “O sanduíche aqui é mais gostoso do quê lá dentro”, dizia um homem dentro de uma Kombi transformada em lanchonete, por volta das onze e pouco da manhã.
A vida no pequeno município de 150 mil habitantes é pacata, mas as poucas notícias bombásticas costumam ganhar repercussão internacional. Epicentro de terremoto de 9,6 na escala Richter, o maior registrado na história, em 1960, Valdivia foi exibida no Discovery Channel no ano passado porque uma moderna ponte, orçada em US$ 15.800.000, não pôde ser concluída ao ser constatado erro de cálculo dos engenheiros. Mas aquele domingo, dia 8 de maio, poderia colocar Valdivia em evidência por um bom motivo. “Vamos Torreón concha de su madre”, ecoava intraduzível impropério um senhor gordo com espesso bigode e trajado de vermelho, a única cor que se via nos arredores do estádio Parque Municipal.
O Deportes Valdivia, time da cidade, entraria em campo em alguns minutos. Todos os três mil lugares disponíveis estavam lotados, pois os ingressos haviam sido vendidos uma semana antes. O pontapé inicial seria às 12h, e o empate já seria o suficiente para garantir o troféu da Segunda División da temporada 2015/2016, que poderia ser seu único título em três décadas de história. A única vaga de acesso à Primera B era justamente a do campeão. O sonho mobilizou até os que não haviam ido a uma partida sequer na temporada ou os que não conheciam a história do clube, que chegou a estar na primeira divisão até 1989, para depois passar mais de 10 anos inativo até ser ressuscitado.
Kilian Delgado, camisa 10 do time anfitrião, ajeitava os meiões. Cinegrafistas do canal de esportes CDF ajustavam o foco. Entusiastas que não acharam ingressos apertavam os olhos diante da televisão. Fãs sacudiam as bandeiras nas arquibancadas. Muito longe do palco do jogo, o valdiviano Jorge Andres Godoy Solis se acomodava em sua poltrona, com uma mão no controle remoto e outra na cerveja, de preferência da cervejaria Kunstmann, símbolo da cidade apelidada de La Perla del Sur. Para recordar gole por gole que Santiago não era tão longe assim.
Apita o árbitro, começa o jogo. Mesmo com a saída de bola, algumas dezenas de torcedores ainda continuavam do lado de fora, contagiados pela atmosfera de festa, e não pensavam em voltar para casa. A televisão não poderia transmitir mais que imagens. Lanchonetes itinerantes seguiam com a venda de sanduíches e bandeiras. “Acho que faltando uns 10 minutos para o fim do jogo os policiais vão liberar a entrada”, disse um esperançoso espectador entre uma mordida e outra no seu completo italiano, o hot dog chileno, que além de pão e salsicha, leva abacate, tomate cortado em cubos e maionese.
O clube local só necessitava de um empate contra o verde e amarelo La Pintana para sagrar-se campeão da terceirona do Chile, insolitamente alcunhada de Segunda División, já que a segundona se chama Primera B e a elite do futebol campeão da América, Primera A. Antes fossem os nomes dos campeonatos as únicas peculiaridades da terra de Elías Figueroa, Ivan Zamorano e Alexis Sánchez. Antes fosse.
Festa?
“Para mim existe um grupo pequeno de torcedores fiéis. Há muitos simpatizantes, mas o futebol está em um momento de reencantar, para que assim as pessoas passem a ser torcedoras”. As palavras do camisa 10 Kilian Delgado eram sinceras. Valdivia novamente era notícia em todo o país na semana que sucedeu a final, não só nos programas de esportes. Nascido na cidade e desde 2009 no clube, no entanto, o meia de 26 anos não vivia uma rotina de herói.
A alegria pelo triunfo de 5 a 1 sobre o La Pintana dias antes não estava refletida em sua expressão facial. Seus olhos estavam em uma pelada que acontecia no gramado sintético do Felix Gallardo, estádio em que o Torreón jogou até janeiro, quando houve a transferência de mando de campo para o gramado natural do Parque Municipal, poucos quilômetros dali. “Não pudemos celebrar tanto. Nem tivemos tempo”, comentou o meia, que estava na arquibancada ao lado de seu companheiro de time, Fabian Gómez, camisa 17.
Após o apito final e as comemorações no domingo, dia 8, um novo campeonato começou. Campeonato este que colocaria a cidade de Valdivia novamente nos noticiários. Novamente por temas não tão agradáveis. Kilian Delgado, Fabian Gómez e demais jogadores passaram a ser espectadores. O desfecho do acesso do Deportes Valdivia saía das quatro linhas para adentrar em mesas e cadeiras cercadas de paredes de concreto, ocupadas por homens de terno e gravata com a agenda menos disponível que a dos principais protagonistas do esporte.
Futebol-arte da negociação
“Você será comunicado com a Associação Nacional de Futebol Profissional. Espera na linha, você será atendido por uma de nossas operadoras. Obrigado”. A mensagem acolhedora com o hino da Fifa de música de fundo pode ser ouvida por qualquer residente no Chile interessado em fazer contato com a entidade que regula as três primeiras divisões do futebol nacional. As chamadas são transferidas para o bonito edifício da ANFP, na região metropolitana de Santiago. Desde julho do ano passado, a ostentação de uma faixa de campeão da Copa América na fachada contrastava com o clássico marrom tijolo preponderante.
O sucesso da seleção dentro de campo, os gols de Alexis Sánchez e as roubadas de bola de Aránguiz coexistiam com denúncias de corrupção que envolviam o presidente da ANFP, Sergio Jadue, que renunciou ao cargo em novembro do ano passado. “O futebol chileno passa por um mal momento. As pessoas à frente do futebol estão enchendo os bolsos de dinheiro. A Copa América abafou isso”, contextualizou Fabian em uma resenha longe dos assépticos corredores onde são tomadas as decisões mais importantes do futebol chileno, sem perder de vista a troca de passes no gramado sintético de Felix Gallardo.
O estádio simples, com boa parte da estrutura de madeira, foi um dos lugares onde Fabian e Kilian deram seus primeiros passos no futebol. “A ANFP se foca nos três grandes [Colo Colo, Universidad de Chile e Universidad Católica] e nos eventos massivos [o Chile sediou o mundial feminino Sub-20 da Fifa em 2008, a Copa América de 2015 e o mundial sub-17 da Fifa também no ano passado]. Esse sucesso não se reflete no futebol local”, opina Kilian em um momento em que seus olhos já não fixavam a movimentação no campo.
O Deportes Valdivia precisará desembolsar, até o dia 9 de junho, uma quantia no valor de 1.200.000.000 pesos chilenos, equivalente a R$ 6.147.600,00. Isso se não quiser disputar novamente a Segunda División, depois de tanto sacrifício para lograr o acesso. Metade do valor seria repassado à equipe que na mesma temporada fez o caminho inverso, ou seja, descendeu da Primera B à Segunda División. A utilização da outra metade, porém, não está explícita em nenhuma nota oficial da entidade. Tampouco representantes se mostram disponíveis a explicar por telefone ou e-mail. Os custos de passagens e hospedagens durante os torneios são de incumbência dos clubes. A troca de passes seguia em Felix Gallardo. A resenha também.
Contas na mesa
Segundo o presidente do Deportes Valdivia, José Gandarillas, o orçamento mensal do clube é de 20 milhões de pesos chilenos, equivalente a R$ 102 mil, que são arrecadados principalmente com patrocinadores e bilheteria, com ingressos que custam 4 mil pesos chilenos – R$ 20,50. Na maioria dos 32 jogos da temporada, entre agosto e maio, o público não passava de 600 espectadores. Segundo o prefeito, Omar Sabat Guzmán, 30 milhões de pesos chilenos da prefeitura são entregues ao clube por ano (R$ 153 mil). Além do salário dos jogadores e comissão técnica, Gandarillas alega que os custos mensais vão de viagens, todas de ônibus, que chegam a 3 milhões de pesos chilenos (R$ 15 mil), a aluguel do estádio que pertence à prefeitura, por 500 mil pesos (R$ 2,5 mil). Apesar da decisão inicial de cobrar pela taxa de inscrição, a ANFP aceitou o pedido de reunião com dirigentes em uma quarta-feira, dia 11 de maio. “Confio na atual administração da ANFP”, eram as palavras do mandatário do Torreón durante todo o período de negociação, apesar de alegar que não teria como pagar a taxa a não ser endividando o clube. “O diretório da ANFP tem vontade de resolver, mas é uma decisão da maioria dos clubes chilenos. Não houve mudanças”. As regras podem ser mudadas com 4/5 dos votos, sem necessidade de negociação.
Nenhum trato foi feito com a ANFP. A norma foi criada em novembro de 2011 e passou a ser aplicada em 2013. Até o momento dois clubes pagaram a taxa, mas em condições diferentes. O Ibéria, campeão da terceirona em 2013/2014, pagou o mesmo valor que é demandado ao Deportes Valdivia, mas em um período de dois anos. Já o vencedor da edição de 2014/2015, o Puerto Montt, pôde pagar metade do valor demandado ao Ibéria e Valdivia. Segundo o vice-presidente puertomontino, Julio Aguilas, o clube fez um “acordo geral histórico”. Embora o enfoque não tenha sido dado durante a final contra o La Pintana, hipotetizou-se o preço do acesso. “Pensávamos que poderíamos negociar as condições como fizeram Ibéria e Puerto Montt”, conta Gandarillas.
Kilian e Fabian não sabem que campeonato vão jogar no próximo ano. Protesto de torcedores na principal praça da cidade, vaquinha para angariar recursos, venda antecipada de jogos da próxima temporada para aumentar caixa do clube e até interferência do Ministério da Justiça no caso foram algumas das ações tomadas às pressas, já que o prazo para o pagamento acaba no próximo dia 9 de junho. “É complicado porque eles são ‘os cabeças’ do problema. Os dirigentes [do Valdivia] tentam dar um bom fim à história, mas acho que arrecadar dinheiro para pagar a taxa é fazer um favor a eles [ANFP], porque eles vão continuar cobrando outra vez, nas próximas temporadas de outros clubes”, opina Fabian.
O drible
Junho se aproxima. Como de costume, sem sol, sem céu azul e sem bandeiras vermelhas. Tanto a Primera B como a Segunda División começam no segundo semestre, depois da Copa América Centenário. Com passagens pelo Temuco e Deportes Puerto Montt, Kilian se sente identificado com sua cidade de nascimento e não pensa em mudar. “Gosto de representar as cores daqui”.
Os gols já não podem levar o Deportes Valdivia à Primera B. Canetas estão a postos de papéis que não poderiam ser driblados nem por Garrincha. Armando Nogueira diria que o espaço de um pequeno guardanapo para o Mané seria um enorme latifúndio. As páginas de atas de reuniões da ANFP, no entanto, parecem “indribláveis”. O futebol, esse mesmo jogado em Felix Gallardo e no Parque Municipal, se perdeu em meio a folhas de papel.