Parece que houve um tempo em que o Brasil jogava um futebol diferente dos demais. O improviso, o jeitinho, a dança e a malandragem eram atributos incorporados na forma de atuar de nossos jogadores e por extensão, pela nossa seleção. No auge do brasilcentrismo no futebol, nosso jogo chegou a ser classificado como poesia em contraposição à prosa européia.
Eu nasci em 1986. Era muito pequeno em 1990 quando Maradona e Caniggia provaram porque o 3-5-2 é algo exótico para a nossa cultura e portanto meu batismo oficial veio em 94 com a conquista mais contraditória de todos os tempos. Levamos a taça com atuações exuberantes, mas o pragmatismo técnico e tático suplantou qualquer esperança de que um dia poderíamos voltar à arte e a ingenuidade bela de 82.
Ainda guardo meus momentos de nostalgia como ter tido a possibilidade de ver onze jogadores trajando chuteiras pretas, Romário voltando ao Fla direto do Barça em 95 logo após ser coroado como o melhor do mundo e ver dois meias do Palmeiras escalados como titulares em uma final de Copa.
Essas possibilidades soam inviáveis hoje o que me dá uma certa permissão para zombar das gerações mais novas, mas a verdade é que eu já nasci com uma seleção à europeia, em um contexto onde a única diferença do Brasil para as demais seleções era possuir mais títulos mundiais.
Hoje em dia, é praticamente impossível dizer que o Brasil tem alguma característica ou identidade distinta em relação a outros países por mais que os slogans publicitários tentem subverter essa lógica.
O “nascidos para jogar futebol” é lindo porque nos remete ao sonho de criança, ao dez ou dois, ao pé com bolha, ao dormir com a bola, coisas que são intrínsecas à nossa cultura. Mas muita coisa acontece no intervalo entre esse momento lúdico e o profissionalismo. No nível de exigência de uma Copa do Mundo, a homogeneidade física, técnica e tática faz com que um Oscar “seja” tão nascido para jogar futebol como um Modric por exemplo.
Em 81 diz-se (imagino que folcloricamente) que o time do Flamengo preferiu tocar pagode e não treinar para o jogo mais importante da história do clube e ainda assim superou o Liverpool. Quando o Brasil adotou uma tática similar na Copa de 2006, o resultado foi vexatório e percebemos que pelo menos em nível profissional, nós já não somos uma entidade intocável e única.
Nós adoramos a mentira que contamos para nós mesmos de que a seleção ainda joga de maneira diferente das demais.
Seguimos admirando o Romário e o Ronaldinho Gaúcho que praticamente personificam o próprio Macunaíma nos relvados, ignorando o fato de que o padrão selecionável passa longe desses caras hoje em dia.
O descompasso entre o que a seleção é e o que se diz sobre ela (ou o que ela era até 82) cria situações absurdas como a crença de que nós ainda temos os melhores 23 jogadores do mundo e rende comentários como “A seleção brasileira não pode ter o Jô”. Ué, mas por que não?
Eu tenho algo mal resolvido com o Jô.
Ele foi um dos primeiros profissionais que lembro de ter sido alçado ao profissional já com uma idade inferior à minha o que fazia com que eu me identificasse com ele, mas ao mesmo tempo me mostrava cruelmente que meu sonho de virar jogador de futebol estava sepultado. E Minha relação ambígua com ele não para por aí.
Até hoje, encho a boca para falar que eu vi o jogador mais novo a atuar pelo profissional do Corinthians na história e o mais jovem a colocar a bola na casinha, mas também morria de raiva quando ele perdia gols inacreditáveis.
De 2003 até 2005, Jô viveu a dialética entre ser um jovem promissor ou um jogador mediano que sempre chutava bunda de vaca. Foi negociado com o CSKA, atuou também no Galatasaray, no Everton e até passeou pelo City, mas devo confessar que nessa época eu acompanhava o menino pela evolução dos atributos dele no videogame.
A repatriação foi possibilitada pelo Inter, mas dizem à boca nem tão pequena que o garoto se emocionou com as célebres noitadas de Porto Alegre e o Atlético-MG o acolheu. Entre um gol tímido e outro, Jô foi ganhando confiança e evoluindo e eu ia torcendo timidamente tentando adivinhar o final desse filme que se desenrolava diante dos meus olhos.
A chance na Seleção veio e ele aproveitou como poucos.
O caminho mais fácil e covarde seria afirmar que a amarelinha é muito pesada, que a nossa seleção é diferente, que nossos jogadores são malabaristas e que o Jô jamais deveria representar o Brasil em uma Copa do Mundo, mas quer saber? Eu cansei de repetir uma ladainha que para mim nunca foi verdade!
Faltando poucos dias para a Copa, eu olho para o Jô e sorrio. Não por escárnio ou ironia, mas por saber que contamos com um jogador que surgiu cedo, jogou fora, voltou, fez cagada, se reergueu e tratará a amarelinha com a dignidade que ela merece.